Assexuais contam como se descobriram e aceitaram
Em uma sociedade que hipervaloriza o sexo, a comunidade assexual contraria convenções e vive o afeto de maneira autêntica
Bolo é melhor do que sexo? A pergunta, a princípio inusitada, esconde uma história peculiar: tudo começou em um fórum do site da Asexual Visibility and Education Network (algo como “rede de educação e visibilidade assexual“, em tradução livre), mais conhecida como AVEN. O espaço, idealizado pelo ativista norte-americano David Jay, é a maior comunidade assexual do mundo, com mais de 50 mil participantes. Foi lá que a usuária “Pocky” postou um desabafo bem-humorado, declarando que preferia comer um bolo de chocolate a ter relações sexuais.
A brincadeira, vastamente reproduzida na internet, acabou transformando a sobremesa no principal símbolo da comunidade assex. Aliás, aqui no Brasil, o que não faltam são pessoas que preferem uma saborosa fatia de bolo a engajar em práticas sexuais: segundo dados da pesquisa “Mosaico 2.0”, coordenada pela psiquiatra Carmita Abdo em 2016, cerca de 3% dos homens e 8% das mulheres sentem pouca ou nenhuma atração sexual por outros indivíduos. Isso equivale a, em média, 235 mil pessoas no Brasil. Não é pouca gente, definitivamente.
“É importante compreender que a assexualidade não é a falta de desejo, nem a aversão ou repulsa ao sexo. Inclusive, a falta de libido é chamada de ‘desejo hipoativo’, sendo considerada uma disfunção sexual. O paciente não sente interesse e sofre por isso”, afirma Carmita, que também é coordenadora do Programa de Estudos em Sexualidade (ProSex) do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da FMUSP.
Segundo a especialista, há uma gama de espectros na assexualidade, envolvendo desde aqueles que se consideram “estritos” (não sentem necessidade de transar, direcionando a sua energia libidinal para outras áreas da vida), “demissexuais” (caso houver vínculo afetivo, podem, eventualmente, sentir alguma atração sexual) e os “cinzentos” (chegam a se relacionar sexualmente durante determinados períodos, mas de maneira muito branda).
A seguir, você confere o relato de três membros da comunidade assex, que detalham como é vivenciar o afeto de acordo com as suas próprias regras.
Assexualidade não é frescura
Gabriela Celiberto, biomédica de 26 anos, descobriu ser assexual aos 23, logo depois de sair da faculdade. Já nessa época, era perseguida por pensamentos que lhe causavam uma profunda inquietação: “Não conseguia me sentir normal. Eu via exemplos de relacionamentos baseados em sexo, séries retratando situações sexuais, e eu simplesmente não me enxergava nesses cenários”, conta.
Para ajudar a lidar com a angústia, passou a pesquisar informações na internet. Foi aí que encontrou pessoas que se sentiam como ela: “O problema é que o assunto não é tão divulgado, por isso demorei anos para compreender a minha identidade. Eu nem sabia que existia um ‘A’ na sigla ‘LGBT’!”.
Enquanto mergulhava no assunto, tomou ciência de todos os espectros da assexualidade, e passou a se identificar como demissexual. Ela afirma que, por mais que não precisemos de rótulos e siglas para sermos felizes, é importante se sentir pertencente a um grupo.
“Hoje, já não me sinto tão pressionada a cumprir certas expectativas sociais como antes. Eu odiava ir para a balada com as minhas amigas, para depois contar com quantos meninos ficamos, ou quais experiências sexuais tivemos”, afirma.
Para a biomédica, não faz sentido ir para festas e beijar pessoas com quem não estabeleceu uma conexão genuína. Tal raciocínio também se estende ao sexo: “Foi uma briga interna até eu aceitar que não é porque todo mundo faz, que eu preciso fazer também”, diz.
Quando finalmente fez as pazes com a própria essência, porém, precisou enfrentar uma certa resistência de seus familiares ao compartilhar a notícia: “Minha mãe disse que eu ainda não havia conhecido a pessoa certa, que eu estava confusa e, em algum momento, a minha hora chegaria e toda essa frescura iria passar”, conta.
Todavia, apesar das falas equivocadas que escutou, Gabriela diz não guardar mágoas da mãe: “Sei que esse preconceito aconteceu por ela não entender e nem saber o que é ser alguém assexual”. No fim das contas, a biomédica reitera que deseja o mesmo que todos: alguém que a apoie, a deixe confortável e respeite sua orientação sexual.
Salva pela arte
Vitoria Moreira, designer de 24 anos, se encontra no que os especialistas chamam de “área cinzenta” da assexualidade.
“No espectro, seria em algum lugar sem aversão ao sexo, mas com menos afinidade que alguém demissexual”, afirma. Ela conta que, em toda a sua trajetória de vida, nunca sentiu atração sexual por ninguém com quem já interagiu.
“Eu poderia viver tranquilamente sem sexo, mas não me importaria em fazer, caso eu sinta vontade em algum momento”, diz. Apesar de hoje estar bastante confiante em sua orientação, Vitoria afirma que, até o início da fase adulta, acreditava intensamente que sua vida amorosa era um grande desastre, chegando a vivenciar sentimentos de confusão e culpa em relação a sua identidade.
Isso mudou de forma inesperada: “Durante a pandemia, enquanto assistia ‘Bojack Horseman’, cheguei na cena em que o Todd Chávez se descobre assexual, e fala: ‘Eu não sou gay. Eu só acho que eu não sou nada’. Isso refletiu profundamente em mim”, afirma.
Ela conta que, se não fosse pelo seriado, até hoje não teria ido atrás das informações que lhe proporcionaram uma forma autêntica de se encontrar no mundo: “Eu sou muito grata pela representação da série. Sem ela, talvez nunca fosse capaz de descrever a minha própria existência”.
O que eu sinto é real
Antes de descobrir a própria assexualidade, Carol Tomé, jornalista de 24 anos, já se identificava como bissexual. Contudo, o seu senso de identidade foi profundamente ampliado após a sua amiga se declarar demissexual: “Eu nem sabia o que isso significava. Então, ela me explicou que eram pessoas que precisavam de uma conexão emocional para conseguir sentir atração sexual”, diz.
Assim que ouviu a colega, uma chave virou na cabeça da jornalista, que não demorou para devorar quaisquer conteúdos que achasse sobre o assunto. “Pela primeira vez, me senti completamente descrita. Fui atrás de mais informações, passei por muitas matérias equivocadas, claro, mas no meio deste processo de busca, encontrei a AVEN [fórum de David Jay]”.
Desde lá, Carol conta que vem atraindo muitas pessoas assexuais para a sua vida — algo que a motiva a não sentir culpa por não querer se relacionar com outros. “Nós mulheres lidamos com a hiperssexualização desde cedo, e isso sempre me incomodou. Não tenho problema em ver coisas sexuais, mas não quero ser forçada a reproduzir comportamentos que não me dão prazer”, afirma.