Como perder a noção do tempo sem esquecer a gravidade dos tempos
A escritora Juliana Borges faz uma relação da perda de noção do tempo durante o distanciamento social com pensamentos de filósofos no diário de hoje (9)
Não sei mais em que dia da quarentena estou. Decidi parar de contar lá pelo 23º dia. Não sei bem porquê, mas me pareceu uma… perda de tempo. Muita gente tem achado que está perdendo tempo na quarentena. Tempo de viver coisas, lugares, pessoas. Pode ser. O coronavírus, esse tão-conhecido-desconhecido-que-ninguém-quer-conhecer, mudou os planos de todo mundo. Eu apenas sei que o hoje é o hoje, o agora, o presente. Em A hora da estrela, a voz narrativa escrita por Clarice Lispector disse que “vivemos exclusivamente no presente pois sempre e eternamente é o dia de hoje e o dia de amanhã será um hoje, a eternidade é o estado das coisas nesse momento”. Esses tempos estão me ensinando a lidar com uma coisa por vez. A encomenda de frutas e legumes para a entrega atrasou. Entre o ódio de só ter recebido a notícia porque me interessei em perguntar quando a encomenda chegaria, preferi guardar comigo um leve rancor, que passará logo, e cancelar a compra. Afinal, precisava de legumes e verduras para o jantar de hoje. Amanhã penso no amanhã, que será hoje. E assim por diante.
Em vez da tormenta do ódio, meu cérebro logo pensou em como resolver o jantar de hoje. E a resposta óbvia paulistana foi a pizza. Segundo passo, no manual “não entre em pânico em tempos de pânico”, foi pensar em um futuro não muito tão distante. Então, o amanhã, que será hoje, se tornou uma encomenda no mercado do bairro que não me renderá o esforço de sair de um carro. Frutas e legumes como em um drive-thru. Perfeito. Tá certo que o meu viver exclusivo no presente não tem o lirismo lispectoriano, mas eu tento. Isso não significa que não busquei me organizar para a pandemia, já que os alimentos mais duráveis estão garantidos. Antes da calmaria, veio a tormenta.
Mas essa digressão toda era para falar do tempo, coisa ampla de definir. Para Aristóteles, o tempo é “o número do movimento segundo o antes e o depois”. Já os gregos do período arcaico compreendiam as partes do tempo como momentos para determinadas atividades. Primeiro, o Tempo, como divindade observadora da vida; depois, O Tempo como divindade que interfere em momentos da vida. Para Descartes, o tempo era marcado pelo movimento. Uma ideia influenciada pela filosofia de Santo Agostinho, que acreditava no tempo como esse movimento incessante, dividindo-o em passado-presente, presente-futuro e presente-agora. Há os filósofos como Leibniz, que pensavam o tempo como sucessivo ou como Heiddegger que pensava o tempo como um devir. Já Nietzsche se perguntava se era possível perdermos essa ideia de linearidade do tempo. Como você pode ver, o debate é intenso e antigo na Filosofia e, para fins de uma coluna-diário, acho que minha tentativa de dar um panorama mais fez perguntas do que trouxe respostas.
Ao terminar com Nietzsche, me veio o pensamento de que a gente pode até ter dificuldade de perder essa noção linear do tempo, mas que é inegável que conseguimos nos alienar dele. Como eu acabei me alienando sobre o dia de hoje, sobre há quantos dias estou em quarentena, sobre hoje ser véspera de feriado, por exemplo. Aliás, só notei isso ao ler uma matéria de jornal sobre o esforço para que as pessoas parem de achar que quarentena seja férias. Eu fico impressionada com isso. Com o negacionismo diante de fatos, diante do “presente-agora”: são milhares de pessoas morrendo pelo mundo, mais de centena só no Brasil acometidas pelo novo coronavírus. E eu cito novamente o Gianfilippo Banchieri, prefeito de Délia na Itália, porque acho que o recado-desabafo dele, há poucos dias, foi recheado de verdades: o que é preciso para as pessoas se alarmarem? Enquanto eu escrevo, meus vizinhos começam festinha com forró, por exemplo. O que precisa para que as pessoas entendam a gravidade do momento? Eu juro que queria estar a caminho da praia ou alguma casa de campo, já que está frio em São Paulo, agora. Já diria Xuxa Meneghel, “e quem não quer?”. Mas o que é preciso para que a ficha caia nas pessoas? Para que elas esqueçam que é véspera de feriado ou que, ao menos, entendam que este feriado não será como outros que já vivemos? Como se perder no tempo sem esquecer os tempos?
Hoje, encontrei um vídeo do ano passado, ou do “presente-passado”, em que um amigo fazia previsões para o ano de 2020. Éramos felizes e não sabíamos, na capital política americana, enquanto reclamávamos da conversão que fazíamos do preço da cerveja em dólar para o real. Mas só durou até o segundo pint*. Daí em diante, perdemos a noção do tempo e de como viria a fatura do cartão de crédito no mês seguinte, o “presente-futuro”. E ele dizia: “A grande virada internacional, em 2020, vem aí”. Eu juro que estávamos falando de eleições e política. Mas parece que 2020 pregou uma peça enorme na gente. Melhor guardar como memórias os pints de variados tipos de cerveja, capazes de nos fazer sentir como sommeliers. Melhor pensar que a grande virada ainda está porvir. Melhor pensar nesse tempo como devir, como algo que está para acontecer, como uma grande virada internacional em que a gente possa voltar a se abraçar e que eu não cometa mais a loucura de incluir em um mesmo texto citações de Clarice Lispector, Nietzsche e Xuxa Meneghel. Mas, o que posso fazer? Contraditoriamente, ou não, eu amo os três.
*Pint é mais ou menos meio litro de cerveja. Mais ou menos porque um pint de cerveja nos EUA é o equivalente a 473ml, enquanto que nas terras da Rainha Elizabeth, a quem eu chamo carinhosamente de Beth, o pint é algo em torno de 568ml. Acho que certos estão os britânicos, pois, como aprendi com minha mãe, a gente arrendonda sempre para cima.
Acompanhe o “Diário De Uma Quarentener”:
01/04 – A rotina do isolamento de Juliana Borges no “Diário De Uma Quarentener”
02/04 – O manual de sobrevivência de uma quarentener
03/04 – Permita-se viver “o nada” na quarentena sem culpa
04/04 – O que a gente come tem algo a ver com as pandemias?
05/04 – As periferias e as mobilizações na pandemia
06/01 – Um exemplo de despreparo em uma pandemia