Ligações Perigosas: amor, ódio e sobrevivência feminina na Corte Francesa
Série da LionsgatePlus resgata a origem da história da Marquesa de Merteiul, com olhar modernizado
No ano em que completaram 240 anos do lançamento do clássico da literatura francesa, Les Liaisons dangereuses ou Ligações Perigosas, de Pierre Choderlos de Laclos, ele chegou à plataforma Lionsgate Plus em formato de série. Mas calma, não é a mesma história! Nos apresentam o que chamam de prelúdio, ou seja, recontam como eram os jovens anti-heróis da trama: a Marquesa de Merteiul e o Visconde de Valmont. Espetacularmente, devo acrescentar.
Além dos mais de dois séculos do livro, são quase outros 35 anos desde que o filme de 1988 fez sucesso e ganhou indicações ao Oscar. Alguns diálogos – ousados para a época – são hoje incômodos. Há estupro de menores de idade, chantagem, violência, bullying e a clássica máxima do machismo de que mulheres só eram felizes fazendo os homens felizes. É, Ligações Perigosas poderia não sobreviver ao tempo se não fosse a série de oito episódios (a segunda temporada já foi confirmada!) que traz uma nova perspectiva sobre o clássico. Escrito por uma mulher (Harriet Warner), a produção se propõe a recontar a transformação da jovem Camille (Alice Englert) na Marquesa de Merteuil.
Para apreciar a atual, vale relembrar a história original. O livro foi lançado em quatro volumes, em março de 1782, ou seja, apenas sete anos antes da Revolução Francesa, e desde que chegou ao mercado foi considerado uma publicação sensação na França. Embora seja uma obra de ficção que falava de romances, traições e escândalos na corte francesa com apuro e detalhes, ressaltando a decadência e opulência que viria acabar violentamente menos de uma década depois.
A trama do livro é relativamente simples: um casal de ex-amantes faz uma aposta amoral de corromper boas pessoas, mas, na verdade, há uma vingança pessoal conduzindo a tragédia. O que é excepcional é a narrativa completamente original, porque é apresentado como coletânea de cartas. Entre elas se destacavam as correspondências trocadas entre o Visconde de Valmont e a Marquesa de Merteuil, cuja docilidade externa era apenas a fachada de dois narcisistas sem empatia por suas vítimas, usando sedução como arma para controlar e explorar socialmente os outros. O jogo de “quem poderiam ser os verdadeiros Valmont e Merteuil” movia Versailles, incluindo a Rainha Maria Antonieta como uma das mais apaixonadas por Ligações Perigosas.
O autor, Laclos, circulava entre os aristocratas e era um oficial militar com ambições literárias. Queria “escrever uma obra que se afastasse do comum, que fizesse barulho e que permanecesse na terra após sua morte”. Tentou com poesias, libretos para óperas, sem sucesso até que, durante uma missão no exterior, em 1777, começou a trabalhar em Les Liaisons Dangereuses. Terminou o primeiro rascunho em seis meses e o sucesso foi tão absoluto que vendeu mais de mil cópias assim que foi lançado. É considerado até hoje uma das obras-primas da literatura do século 18.
Eu li o livro por volta de 1989, depois de ter sido fortemente impactada com as brilhantes atuações de Glenn Close, John Malkovich e Michelle Pfeiffer no filme de Stephen Frears. É curioso que, mesmo com tanto sucesso e elogios, a primeira adaptação para o cinema só tenha surgido no final dos anos 1950. Em 1976, ele fez nova tentativa com Une Femme Fidèle. Precisou chegar aos anos 1980 para que o teatrólogo britânico Christopher Hampton escrevesse uma peça em cima do livro para que Ligações Perigosas finalmente fosse redescoberto internacionalmente.
A peça foi febre mundial (teve uma montagem brasileira em 1987, com Marieta Severo e Carlos Augusto Strazzer) e fez de Alan Rickman (décadas antes de ser Severus Snape em Harry Potter), o Valmont original, uma estrela. Pois é gente, Snape foi Valmont um dia! Mas, mesmo famoso, não foi escolhido para o filme. Milos Forman era o diretor original, mas entrou em conflito com o estúdio e Stephen Frears assumiu a produção de 1988, com Glenn Close, John Malkovich e Michelle Pfeiffer (além de Uma Thurman e Keanu Reeves novinhos). A versão de Forman veio no ano seguinte, com Colin Firth no papel de Valmont e Annete Bening como Merteiul, mas não foi tão bem sucedida e altera radicalmente o final. Dez anos depois, Cruel Intentions, com Sarah Michelle Gellar, Reese Witherspoon e Ryan Philippe, atualizou a trama para Nova York dos anos 2000, e há a versão teen, na Netflix. Com isso, a versão da Lionsgate Plus nos trás uma vantagem, a de estar efetivamente ligada à obra de Christopher Hampton, que é a nossa maior referência (e a mais perfeita).
Se no final de sua vida Merteuil usava sexo e sedução para se manter independente, ela ainda amava profundamente Valmont, trazendo infelicidade e tragédia para vida de ambos. Na série da Lionsgate Plus é um pouco diferente. Camille aprende a se defender com o apoio de outra mulher e combate a sociedade patriarcal ferozmente. Essa ótica é importante para manter a relevância da obra em tempos atuais. É uma das séries que recomendo, e muito, conferir.