O canto rebelde de Cyndi Lauper
Documentário "Cyndi Lauper: Let the Canary Sing" traça a trajetória de um dos ícones pop dos anos 80, cuja voz e comportamento estranhos marcaram a arte
Desde adolescente sou fã de Cyndi Lauper. Sua voz diferente, seu visual eternamente inesperado, seu alcance vocal inconfundível e suas canções pop marcantes como Time After Time, tudo que faz dela uma lenda do pop. Tive o privilégio de vê-la ao vivo mais de uma vez, todas inesquecíveis. Não estava considerando a chance de ir conferi-la no Rock In Rio 2024, mas o anúncio de sua aposentadoria dos palcos me faz reconsiderar.
Aos 70 anos, Cyndi não perdeu a voz, não perdeu energia e segue sendo do tipo “sincerona”. Apenas já sabe que não precisa provar mais nada de seu talento e que já é hora de tirar o pé do acelerador.
A notícia pegou o mundo meio que de surpresa, pois é muito raro um músico “parar”. Mas Cyndi sempre foi como anunciou em seu 1º álbum: incomum. Ao avisar que a turnê Girls Just Wanna Have Fun Farewell Tour será sua última, detonou uma onda de nostalgia entre seus fãs. Acompanhada pelo documentário Let the Canary Sing, sobre sua vida e carreira, na Paramount +, é uma chance imperdível de curti-la.
Há mais de dez anos sem uma grande turnê, a cantora-compositora-ativista conversou com o New York Times que a aposentadoria era porque em alguns anos poderá não ter mais a mesma voz, e ela sabe muito bem o que é isso.
Antes de virar uma estrela em 1983, a cantora danificou as cordas vocais e parou por um ano, com os médicos afirmando que ela nunca mais cantaria nem uma nota. Isso foi em 1977, mas ela não apenas recuperou a voz (com a ajuda da treinadora vocal Katie Agresta), como explodiu como uma das cantoras mais rentáveis e representativas dos anos 1980, com seu álbum solo de 1983 – She’s so Unusual – ganhando prêmios e vendendo milhões.
Esse tipo de transparência sempre reforçou a autenticidade de Cyndi Lauper. Se no palco era quase histriônica, na vida pessoal sempre primou pela discrição e poucos e duradouros relacionamentos.
Em sua biografia, de 2012, ela insiste em reconhecer que lamenta que os fãs confundam sua música com sua pessoa, nos alertando que nem sempre é simpática. O próprio alerta sugere o oposto, mas ela efetivamente sempre avisou. Eu a amo ainda mais por isso.
E se demorou tantos anos para assinar um livro, precisou de ainda mais tempo para aceitar a história de sua vida em filme. Segundo ela, documentários feitos em vida são estranhos e ela não se sentia particularmente incompreendida: sempre comunicou exatamente o que queria dizer. Porém, topou o desafio e é aí que entra o documentário da Paramount+.
Let the Canary Sing está disponível desde o final de maio de 2024, mas como estive viajando, só conferi agora. Rico em imagens de arquivo, é assinado pela diretora Alison Ellwood, a mesma que assinou o excelente filme sobre a Go-Go’s e uma das maiores especialistas dos anos 1980. E Cyndi, como sabemos, foi uma das maiores daquela década.
Assim, embarcamos na trajetória da cantora até o topo, com o objetivo de contextualizar as escolhas e percalços da carreira de quarenta anos de uma artista que nunca foi o que parecia ser.
Se na aparência é uma mulher pequena com grande pulmão, ainda maior é sua habilidade e prontidão de brigar por sua individualidade. O documentário é menos detalhado do que sua autobiografia, mas mantém a narrativa questionadora.
Os depoimentos são vitais para tornar o filme interessante, mas a tendência de Alison é de enaltecer o artista documentado e, no caso de Cyndi, fica um tanto fora do tom. Ouvimos como foi “chegar lá”, mas “na queda” nada é aprofundado ou realmente comentado.
Para os fãs, como eu, é uma delícia vê-la e ouvi-la mais jovem, lembrar como Time After Time foi escrita e como mudou Girls Just Wanna Have Fun de uma uma música machista para um hino feminista. Mas quando acaba, ficamos com uma sensação de faltou alguma coisa.
O grande problema de Let the Canary Sing não é diferente de muitos semelhantes, ou mesmo das biopics que estão no cinema. Quando o artista aprova, sobra editorialização do que aconteceu e acaba faltando autenticidade.
Vamos combinar que Cyndi Lauper é sinônimo de autêntico, o que faz isso ser uma pena! Ainda assim, é bacana rever como ela desenvolveu seu senso estético sem a ajuda de ninguém, como abraçou as causas feministas e LBGTQ+ por conta de suas ligações extremamente pessoais e, com isso, viajar por sua juventude é sensacional.
Seu legado é inegável também. Com mais de 11 álbuns gravados, um musical premiado na Broadway, entre tantos sucessos, é nostálgico pensar que suas apresentações passarão a ser reduzidas a partir de agora.
Cyndi completa 71 anos em 22 de junho de 2024 (me antecipo em um dia para parabenizá-la). Mesmo com essas ressalvas, com Let the Canary Sing ela mais uma vez nos confirma ser dona de si.
Como não amá-la? Ah! Uma curiosidade: o título que se traduz por “deixe o canário cantar” se refere à frase de um Juiz que a defendeu quando, antes de fazer sucesso, embarcou em uma longa briga judicial com um ex-empresário. E ouvi-la cantar sempre foi um privilégio!
Parabéns, Cyndi Lauper. Espero revê-la em breve.