Ao longo da série Ripley, assim como no livro e filme O Talentoso Sr. Ripley, Tom Ripley (Andrew Scott) tem dois antagonistas que nunca se enganam com ele: Freddie Miles (Eliot Sumner) e Marge Sherwood (Dakota Fanning), o melhor amigo e a namorada de Dickie Greenleaf (Johnny Flynn). Portanto é fácil entender a aversão de Ripley por ela, mas e os outros homens?
Sim, o pai de Dickie, o inspetor Ravinni (Maurizio Lombardi) e praticamente todos os homens da série têm meio que uma irritação com Marge, sem levar a sério o que ela está alertando o tempo todo: algo errado aconteceu na viagem de San Remo e Dickie não simplesmente desapareceu.
É uma misoginia gritante e até frustrante, pois reflete como as mulheres independentes são julgadas e ignoradas. Dickie perdeu a vida e a fortuna (falarei mais sobre ele), mas uma das principais vítimas de Tom Ripley é justamente Marge Sherwood, que sofre gaslighting quando é desacreditada e manipulada a acreditar que “perdeu” o namorado por ser mulher e tê-lo afastado dela ao “exigir” uma série de coisas que a gente sabe serem justificadas. Ainda assim, por que não simpatizam com Marge?
Quem é Marge Sherwood?
Na série da Netflix, assim como no livro, conhecemos Marjorie Sherwood, a Marge, quando Ripley chega à Itália e se apresenta à Dickie Greenleaf. O golpista americano foi contratado pelo pai do conterrâneo para localizá-lo e trazê-lo de volta para os Estados Unidos (na série não explora, mas era porque a mãe de Dickie estava morrendo de câncer).
Em tese, um trabalho fácil e bem pago, mas tudo muda quando Ripley conhece Dickie e se encanta com tudo: sua personalidade, sua fortuna, sua sofisticação descuidada, sua indiferença à família (ele ignora solenemente o apelo de seus pais), sua paixão pela arte (mesmo que não tenha talento próprio) e seus planos de viver uma vida hedonista.
A única coisa que destoa para ele é a namorada, Marge, que Dickie mantém uma relação sem maiores planos e, portanto, aparentemente descartável.
A Marge do livro, assim como no filme de 1999, e até a da série, diferem bastante entre si, outro sinal de como ela é relegada à coadjuvante não importa o meio.
Expatriada como Dickie, ela se imagina uma Ernest Hemmingway de saias, uma escritora do cotidiano e fotógrafa amadora. Sim, ela escreve mal, mas é uma excelente observadora de cenários e pessoas: sua lente faz fotos lindas da Itália e de Dickie, e ela nunca se engana com Ripley, embora nunca alcance a precisão de seu instinto.
Um detalhe que não é pescado por estrangeiros e que faz toda diferença para entender o que causa a reatividade masculina à Marge é que ela é uma moça bonita e inteligente, mas não é rica como Dickie e, ainda assim, é independente. Em outras palavras, é uma mulher moderna.
Nos anos 1950, quando a história se passa, nenhuma mulher deveria ser assim. Todas eram criadas para se casarem e terem filhos, serem prendadas e do lar. Marge é o oposto. Não cobra de Dickie um compromisso (sim, fidelidade, mas não ser a Sra. Greenleaf), não arruma sua casa, deixa aparente suas roupas íntimas no varal, espalhadas pela casa, não lava a louça ou faz compras.
Ela vive tão descuidadamente quanto Dickie, que, ao contrário dela, tem uma mulher serviçal que paga para cuidar de tudo para ele, mas é visto como um romântico.
A autora Patricia Highsmith foi parcial por seu “querido Ripley”, e claramente alimenta nele sua própria aversão à única personagem feminina de destaque na história. Isso mesmo, Marge não é o alter ego de Patricia, mas de Ripley.
Para o pai de Dickie, Marge é uma oportunista esperando conseguir um casamento e, até onde sabe (e nunca fica claro), acredita que é por influência “dela” que o filho está longe de seu país.
A culpa jamais está no homem, sempre na mulher. Até o inspetor Ravinni não pensa muito diferente. Para ele, Marge é uma namorada ciumenta e paranoica, alguém de quem Dickie queria fugir (uma ideia plantada por Ripley).
Tenho uma simpatia especial por Marge, sinto pena dela viver no tempo que viveu. E quando Ripley faz o gaslight, colocando nela a culpa pelo “suicídio” de Dickie, meu coração partiu, porque ela acreditou. Quem nunca?
Portanto, como o interesse romântico de Dickie e a principal rival de Tom no afeto dele, Marge Sherwood representa várias mulheres. Ela é inteligente, educada e gentil, mas como está apaixonada por Dickie, se permite ser tratada injustamente pelas mãos dele e dos que o cercam.
A Marge de Dakota versus a de Gwyneth
Atriz mirim que fez uma ótima transição para os papeis adultos, Dakota Fanning teve uma sombra para o público mais recente que ainda não conhecia o Tom Ripley criado em 1955. O mais recente – e adorado – foi o do filme de Anthony Minghella, de 1999, com uma Gwyneth Paltrow no auge de sua carreira (e recente vencedora do Oscar). Inteligentemente, Dakota escolheu outro caminho para a personagem, mas a comparação é inevitável. E injusta.
No filme que foi indicado ao Oscar, há 25 anos, a Marge de Gwyneth Paltrow é uma jovem rica, sofisticada, que faz parte do círculo social de Dickie. Doce e carinhosa, ela está completamente apaixonada pelo namorado, escolhendo ignorar as puladas de cerca dele, não identificando nada de errado em Tom Ripley, ao contrário, sendo a pessoa que o abraça e traduz as facetas de Dickie e dos amigos dele, incluindo Freddie Miles.
Em O Talentoso Sr. Ripley de Minghella, Marge não pesca a vibe gay entre Dickie e Tom, só se toca que há algo errado quando é abruptamente excluída da vida do namorado (que foi assassinado por Ripley), e aí é que desenvolve uma desconfiança e irritação com o psicopata. A Marge de Gwyneth tem um final mais triste: ela SABE da verdade, mas é considerada louca e precisa ficar quieta, pois não tem como provar nada.
A versão da série da Netflix é menos simpática com Marge, com uma Dakota Fanning meio que espelhando seu rival desde que o conhece. A desconfiança mútua é alimentada por longos silêncios e troca de olhares entre ela e Andrew Scott, por vezes com mais química do que com Johnny Flynn, que é o Dickie de Steve Zaillain.
Johnny fez um milionário misterioso, ciente de suas limitações artísticas, mas muito confortável com o que quer viver. Não ama Marge como ela o ama, isso é igual, mas ele é mais dedicado a ela do que a versão incomparável de Jude Law, que alimenta mais crivelmente a competição entre ela e Ripley por sua afeição.
A Marge de Dakota é mais segura do que a de Gwyneth, desafiando o Ripley de Andrew Scott abertamente. Ela não se abala nem com o “perigo” da influência de Freddie Miles querendo levar Dickie para um Natal de exageros, só se irrita com a presença constante e inexplicável de Tom entre eles.
A placidez com que Marge lida com tudo, até o desaparecimento de Dickie, esperando por ele e apenas se comunicando via cartas (como ela não pescou o estilo diferente de escrita?) é um tanto desconcertante.
Afinal, ela tinha alertado ao namorado para cortar Ripley da vida dos dois, mas ficou estranhamente quieta quando Dickie passa a defender Tom e faz ghosting com ela pelo resto da série.
A manipulação de Ripley é angustiante e finalmente ele ganha o jogo, convencendo Marge da mentira: ele era superior a ela e Dickie se matou por ele. Muito cruel.
O que dói na versão de Minghella, e em parte na versão da Netflix, é que Dickie era consciente de que não amava Marge, mas em ambas as produções estava determinado a se unir a ela, a tentar uma relação que só fazia bem a ele. Tom Ripley tirou essa possibilidade de ambos por ganância e inveja. Uma trágica virada do destino jamais revelada para ninguém além de nós.
Marge versus Ripley: o amor pelas coisas boas e pela fama
Em Ripley, há uma alusão um tanto mesquinha de que Marge passa a apreciar a atenção da mídia sobre ela e que usa sua ligação com Dickie para vender fotos, se promover e até escrever seu livro.
Ela quer encontrá-lo, mas em nenhum momento considera algo mais sério sobre sua partida até encontrar o anel nas coisas de Ripley. E ali, como muitas mulheres, voluntaria a teoria de que ela “o pressionou demais”, “exigiu coisas que não deveria”, “esperou muito” e mais, que “não viu” que Dickie era gay, portanto ele se matou “por sua culpa”.
Seria um narcisismo ou a eterna culpa feminina de ter que ser a pessoa a salvar a todos e resolver tudo? A falta de empatia para esse conflito de tantas mulheres é uma das penas na obra, porque mesmo sendo coadjuvante, é vital para criar o antagonismo com Ripley.
Nas palavras de Patricia Highsmith, Tom Ripley se sente ameaçado pelo “toque feminino” que Marge representa na vida de Dickie. Ele sente repulsa por ela, mas não pode descartá-la sem chamar a atenção de que está diretamente envolvido com o assassinato e o mistério ao redor do jovem milionário americano.
Marge, no livro, é um dos símbolos do desdém de Tom por qualquer pessoa, exceto ele mesmo e Dickie. Acima de tudo, ela representa a sociedade que determina a atração heteronormativa como regra e, com isso, a atração feminina sobre os homens, com a “arma de sua sexualidade” que Tom, sem assumir ser homossexual, odeia.
Dakota não imprime ingenuidade à Marge, o que falta a ela é uma maldade de alma que a faria ver a verdadeira monstruosidade de Ripley. Assim como nós, para ela é bem incompressível que o Dickie de Johnny Flynn, mesmo sabendo que Tom mentiu ao se apresentar e que está sendo pago para levá-lo para Nova York, aceite a presença dele por tempo indeterminado em sua casa, dedicando a ele cada vez mais tempo.
Marge enxerga Tom claramente, vê que há uma esperança romântica em sua estadia prolongada e logo sente ciúmes e ressentimento de ter que dividir o namorado com ele. Aqui está uma coisa que discordo da série. Marge parece ter medo que Dickie – que sabe que não gosta dela como ela gosta dele – vá se envolver com Tom.
Eu entenderia que ela teria ciúmes e medo da influência que Ripley poderia exercer para Dickie encontrar outras mulheres, não a substituir por Tom. Até a cena na qual ela parece gostar de estar sendo fotografada pelo paparazzi, considerava que era injusto o julgamento de que ela também era uma aproveitadora indireta, mas isso meio que fica no ar com essa sugestão. Seria Marge o espelho feminino de Ripley?
A inspiração para Marge Sherwood na vida de Patricia Highsmith
Patricia Highsmith foi uma escritora popular e um tanto controversa, e Ripley foi seu personagem mais famoso e querido. Embora Marge tenha sonhos literários, ela não tem a simpatia da autora e alguns biógrafos sugerem que ela tenha sido a válvula de escape pessoal de Highsmith, porque ela teve um relacionamento homoafetivo com uma mulher casada e começou a criar Tom Ripley durante uma viagem com a amante pela Itália.
Marge teria “herdado” muito das críticas que Patricia Highsmith tinha do rival masculino. Ele estava impedindo que elas tivessem uma vida feliz.
Se for mesmo isso, e tem tudo para ser, é ainda mais triste que Marge tenha sido algo de misoginia. No xadrez que jogou com Ripley, ela começa a partida com todas as vantagens, o que o alucina.
Quem tem o mínimo de conhecimento da tese de Sigmund Freud sabe o quanto ela despertou no sociopata o pior dele, indiretamente. Por outro lado, que mulher um dia não “disputou” com o melhor amigo o tempo e a confiança de seu namorado?
Os homens tóxicos dizem que mulheres usam o sexo para ganhar controle, as mulheres detestam a influência masculina que a afastam da conversa.
O machismo contra Marge é inegável: para Tom Ripley tudo nela é falso e irritante, enquanto as mesmas características dela em Dickie são charmosas e inspiradoras.
Marge não é santa, ela também usa de maldade ao insinuar que Tom fosse gay, porque pensava que isso o afastaria Dickie. Seja como for, ela é a derrotada da história.
Ripley faz com que todos os homens a vejam pela ótica negativa, e com sadismo destrói sua autoestima, suas memórias com Dickie e o relacionamento dela com o namorado, que ele literalmente matou. Ninguém gosta de Marge, mas ela deveria ter a empatia de todos nós. Uma mulher que representa muitas de nós.