Sentei para escrever esta coluna motivada por dois eventos que se canibalizam, que se repelem em absoluta contrariedade. O primeiro foi que acabei de ver um vídeo do UOL no YouTube sobre uma pesquisa que mostra que a avalanche de ódio contra mulheres na internet cresceu, com a ajudinha marota da cultura red pill. Os números dizem que, em comparação ao racismo, xenofobia, capacitismo e LGBTQIA+fobia, a misoginia prevalece em até quatro vezes mais.
Minha questão, no entanto, nem é o vídeo em si, porque isso nem pode ser considerado uma surpresa, convenhamos. O ódio que nos rodeia é palpável, dá pra ver por todo lado e não há uma de nós que escape, nem santa, nem pagã, nem branca, nem preta (esta embora receba toneladas extras de violência), nem magra, nem gorda (idem). A pesquisa do UOL, importante quando vista à luz dos números, soa meio como chover no molhado. A gente sabe. Quer dizer, a gente sabe?
Eu não tinha dúvida disso até me deparar com o segundo motivo, quando, sentada num bar com umas amigas e, por conta de uma piada depreciativa a respeito do papel dos maridos, ouvi um amistoso protesto dizendo que “está na hora de aliviarmos um pouco para os caras”, “pelo menos para os caras legais”.
O zunido no meu ouvido mal tinha passado, quando veio na sequência um “os homens são tão vítimas do machismo quanto nós”, e mais um “eles estão perdidos”, seguido de “o mundo já está muito polarizado”. Tudo isso dito por uma mulher e concordado pela outra. (Aqui vou ter que lançar um disclaimer, porque acredito na boa intenção da alma que falou isso em voz alta)
Aproveitei a ocasião para tentar alargar o meu prisma, vai que perdi alguma coisa. Ouvi e salientei que, sim, concordo que, em alguma medida, o machismo aprisiona homens também (inclusive já escrevi sobre isso numa coluna anterior). Mas não dá pra ir além disso, apesar da minha boa vontade.
Não vislumbro em nenhum pedacinho de horizonte – e o primeiro parágrafo deste texto é só um pontinho de nada nesse emaranhado de razões – um sinal dizendo que está na hora de amenizar o discurso.
A armadilha, no entanto, é que às vezes até parece que está bom, porque, sim, há avanços no cenário e há também homens se esforçando (um pouco), se permitindo uma certa vulnerabilidade e questionando (algumas) posições. Mas a luta feminista não é sobre a versão ursinho carinhoso dos machos que nos cercam. É sobre política, igualdade, justiça, direitos, fim da violência e mais.
Basta abrir qualquer página policial de qualquer portal de notícia, em qualquer dia do ano, para entender que ainda temos muito chão pela frente.
E bota pra frente nisso. Um estudo de larga escala diz que a ala masculina da geração Z está chegando com os dois pés no conservadorismo. Enquanto mulheres jovens dão sinais de querer um mundo menos desigual e mais progressista, os garotos estão fechados com ideias conservadoras e com a misoginia. Ou seja.
Por mais que o machismo traga consequências para os homens, é só um lado dessa briga que morre vítima de ódio de gênero, só um lado ganha menos no trabalho apenas por conta do gênero, só um lado prejudica a carreira e a estabilidade financeira em detrimento da família, só um lado não se vê representado na política, nem mesmo pelos políticos que nos prometem isso, só um lado não pode viajar sozinha sem medo, só um lado tem a sexualidade tolhida na carne em diversos países, etc, etc, etc. E não é o lado deles.
O mundo continua muito parecidinho com os homens, feito para eles, priorizando o conforto e o prazer deles. Se estivesse ruim para os moços, acredite, eles já estariam mexendo seus pauzinhos.
Outro problema do papo breve que tive no bar, e esse é mais sério, é algo que vejo se alastrando por aí. O truque da categoria “caras legais’’. Conheço vários. Sou casada com um, sou amiga de alguns. Homens bacanas de verdade, pelos quais sinto um amor profundo.
Acontece que eu me pergunto onde é que esses caras legais estão quando a gente precisa deles no front do que realmente importa. Quando precisamos que abram a boca em protesto contra o ídolo estuprador, um postzinho que seja, nem deveria doer. Ou quando precisamos que marchem do nosso lado na luta pelo direito ao aborto, ou pelo fim da violência que nos aniquila.
Ou quando pedimos que votem em representantes que estão do nosso lado. Ou quando tentamos ter a nossa arte valorizada e sem a etiqueta “coisa de mulher’’. Ou quando esperamos que eles tenham mais maturidade na condução das relações. Ou quando eles sabem que, executando a mesma função, ganham mais do que nós e ficam ali pianinho porque, né, problema nosso. Ou, ainda, quando estamos exaustas cuidando dos filhos (quem tem), da casa (quem tem) e deles mesmos.
Cadê esses caras legais, estão fazendo o quê? Estão sendo legais como? Lavando a louça, não reclamando da nossa roupa curta e não enfiando a mão na nossa cara quando chegam em casa bêbados? Bom, parabéns por nada, então.
Eu queria mesmo que tivesse chegado a hora de amansar. Esse estado de alerta constante, de medo, de raiva, de injustiça, essa exaustão que é pura e simplesmente ser mulher num mundo feito por homens é indigesta, quando não é letal. Mas não chegou, longe disso.
Então não vamos arredar o pé. E se um dia chegar a hora de baixar a guarda, deixe que eles reivindiquem isso. Não vamos ser nós a advogar a favor dos homens por fazerem o mínimo, ainda mais essa.