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Coluna da Liliane Prata

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A sociedade do grau

"Um minuto de silêncio para os graus, os subtons, os decimais e tudo mais que não é certo nem terrível nem para sempre", escreve nossa editora Liliane Prata

Por Liliane Prata Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 3 fev 2017, 20h58 - Publicado em 3 fev 2017, 20h49
Cena do filme " A eleição" (/)
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Todos os candidatos se apresentaram diante do público. A candidata do partido dos graus, uma senhora que passou a vida sentindo muita compaixão por tudo e todos, e que, no momento, estava exausta de tanta compaixão, de tanta empatia e também do Facebook, testou o microfone, desejou boa tarde a todos, pegou o papel e então discursou:

– Apesar de nós, seres humanos, termos plena consciência da nossa finitude e da nossa pequenez diante do universo, e de convivermos com o gigantesco ponto de interrogação que envolve nossa chegada e nossa partida terrestre… Sentimos vergonha de falar em público, queremos morrer por causa daquela nossa foto horrorosa que a amiga postou no Facebook, ainda sofremos devido àquela gafe cometida cinco anos atrás. Sabemos que nós mesmos, o mundo e a vida são de uma vastidão que não conseguimos alcançar; levamos a sério cada coisa idiota mesmo assim. “Quem nunca?”, como diz minha sobrinha? Quem sempre, né, minha gente, quem sempre!

Risadas na plateia. A candidata continuou:

– Ainda bem que existem graus, ufa! Sou míope, não enxergo um palmo diante do nariz, mas ainda bem que existem os graus. Por exemplo, há aqueles que só molham os pés no oceano dos white people problems, como diz minha sobrinha, e há aqueles que não se poupam nem nos poupam de seu caprichado mergulho diário.

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Os graus: na vida, a gente pode não saber em quem confiar, mas os graus são nossos melhores amigos. Eles sempre estão nos lembrando de que, ufa, não somos preto no branco. Nem nós, nem a vida! “Podia ser pior” não é consolo de pessimista, é método de sobrevivência para quem quer seguir com paz no coração. Não habitemos os extremos. Tem muita brutalidade lá. Um minuto de silêncio para os graus, os subtons, as nuances, os níveis, os decimais e tudo mais que não é certo nem reto nem terrível nem para sempre. Para esbarrar na jaca, basta estar vivo; pisar nela, só quem caminha com muito descuido frugal-existencial.

Todos fizeram um minuto de silêncio. A candidata prosseguiu:

– O capitalismo se mede em uma escala que começa naquelas pessoas só compram o necessário para a própria sobrevivência, pula para aquele estilo de vida de gente que é legal, consciente e tal, mas que não resiste (ou precisa/já está condenado?) a uma sorvida em um chai latte aqui, uma preocupação com cores/tecidos/formas ali… E termina terrivelmente no rei do camarote. Sim, vivo comprando coisas de que não preciso, verdade. Mas como achar que o dinheiro possui na minha vida o mesmo peso que tem para aquele pai que levou o filho de sete anos para tomar injeção em um hospital particular em São Paulo? Quem me contou foi uma amiga, médica desse hospital. A criança precisava da injeção, mas não queria tomá-la de jeito nenhum. O pai, então, ofereceu a ela uma nota de 50 reais. A criança topou. Injeção tomada.

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Tenho meus momentos de mau-humor. Mas vira e mexe me sinto desconfortável por pertencer à mesma espécie daqueles que sempre cumprimentam desconhecidos pelos corredores da firma, mas passam reto pelo pessoal da limpeza. Como todo ser humano, sou egoísta, aceito, sou egoísta, às vezes minto, tenho meus desvios – mas nada comparado com quem desvia dinheiro de merenda, de hospital, com quem rouba bebê na maternidade, falsifica ovo que acaba matando criança por envenenamento (pois é, aconteceu na China, parece).

Na internet, basta ter feito uma coisinha de nada para ter toda a sua reputação arruinada. Você é um pai ótimo, mas foi fotografado mexendo no celular enquanto o filho resmungava? Você é automaticamente promovido a hipócrita, pior pai do ano, farsa completa. Você é legal, mas acordou de mau humor e foi filmada quando deu uma resposta atravessada a um repórter? Acabou seu reinado de gente boa, sinto muito.

Aqui fora, ufa, a gente ainda sabe trabalhar com nuances, graus, um dia depois do outro, essas coisas. Se você cometeu aquele errinho normal, mediano, que não está no extremo da escala, sua reputação está assegurada. Seu filho vai continuar te achando razoável, seu namorado vai continuar sendo compreensivo quanto aos seus episódios de mau humor. Ufa! Vida longa aos graus – e à vida off-line, porque é nela que eles habitam.

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Não é culto ao relativismo, é alívio, mesmo: só os graus nos salvam. Os graus são minha esperança atual. É meio bobo, mas melhor isso do que acreditar que o mundo está sendo tomado por radicais religiosos, machistas, xenófobos e homofóbicos, que não têm sensibilidade para habitar os meios das escalas, só os extremos. É por isso que estou aqui, hoje, nesta eleição: para pedir que votem em mim, que defendo a plataforma dos graus.

A fala da candidata foi recebida com uma salva de palmas.

Então outra candidata pediu o microfone e disse:

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– Minha senhora, tudo o que você disse é muito atraente, mas… Nem sei por onde começar… Lembre-se, vivemos em um país corrupto. Defender os graus é o mesmo que negar a contaminação proveniente do caldo cultural em que estamos mergulhados. Reclamo dos políticos corruptos, mas eu mesma sou corrupta no dia a dia? Defender os graus é defender a si própria. Por que, em vez disso, não defendermos a empatia? Essa é a proposta do nosso partido desde sua origem. Passamos a vida valorizando quem tem empatia pelo bem. Por que não ter empatia com o mal, com o ladrão que há em nós, o machista, o retrógrado e até o assassino? Se somos todos feitos do mesmo material humano, defender o voto no grau apenas nos distancia. Precisamos não reforçar as diferenças, mas nos unir pelas semelhanças. Em vez de condenar o pedófilo, acolhê-lo: como nós, ele é fruto desta sociedade doente. Votem na plataforma da empatia!
– Você disse defender pedófilo? Você enlouqueceu? – perguntou a senhora do partido do grau.
– Eu não disse isso, eu estou defendendo a empatia.
– Eu já estou cansada da empatia – retrucou a senhora. Eu só quero deitar a cabeça no travesseiro à noite e me sentir bem! Eu não aguento mais essa má distribuição da culpa!
– Entendo, mas não podemos escolher nosso candidato baseado no nosso cansaço.
– Sim, podemos! Nada, aliás, cansa mais do que a empatia.

Nova salva de palmas interrompeu as candidatas e a candidata da empatia não conseguiu voltar falar. O microfone foi passado aos outros partidos.

Na hora das perguntas, a candidata defensora da empatia também não conseguiu explicar exatamente como funcionaria uma sociedade baseada na empatia. Nessa questão, a defensora dos graus se saiu muitíssimo bem: maldades acima de 6.0 na escala seriam passíveis de sanção. Um sistema muito simples!

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Na contabilidade dos votos, o partido do grau ganhou com vantagem do partido da empatia.

Quando todos deixaram o recinto, a senhora ficou pensando que, pelo menos, quem tinha vencido era a plataforma do grau, não a do extremo – nesse momento, o barbudo candidato do extremo estava lá, chutando o palanque e planejando organizar um ataque ao partido do grau.

Liliane Prata é editora de comportamento da revista CLAUDIA e escreve aqui no site semanalmente. Para falar com ela, mande um e-mail para liliane.prata@abril.com.br

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