Vai dar tempo
Bom, chega, agora vai. Quer dizer, precisa ir, né. Eu não posso ser tão idiota, certo?
São sete da manhã. Com uma xícara de chá na mão, sento diante do computador. Estou empolgada com meu livro novo. Quando releio o último trecho que escrevi, penso: puxa, que bacana, tô fazendo um bom trabalho. Ok, vamos lá: o que eu penso, mesmo, nesta manhã é: porra, isso aqui tá ótimo. Aaah, que maravilha, que orgasmo em forma de orgulho, hoje vou escrever ainda melhor! Tenho mais ou menos até às onze da manhã para escrever, que demais.
Sorvo um pouco do chá antes de digitar. Que gostosa essa palavra, né, sorver. Tenho um apreço por essa palavra, ela é simples, mas simpática, será que é porque lembra sorvete? Putz, falando em sorvete, eu podia comprar sorvete, está o maior calor, ia ser tão bom se à noite, depois de voltar da redação, eu tomasse sorvete, acho que vou passar no supermercado, puutz, preciso comprar papel higiênico, só tem mais um rolo e ele tá quase no fim, nossa, como pude esquecer do papel higiênico, eu devia ter comprado ontem e…
Sete e vinte.
Fico relendo o que escrevi e sorvendo o chá enquanto evito pensar na palavra “sorver”; o chá acaba, levanto pra fazer café; enquanto a água ferve, vou ao banheiro fazer xixi, faço xixi, faço carinho na minha gata, o celular apita, é uma mensagem da minha mãe reclamando que não ligo pra ela, respondo a mensagem, aproveito pra checar o Instagram, também checo o Face, checo de novo o Instagram, vai que apareceu alguma coisa interessante, que e-mail é esse que acabou de chegar?, sinto cheiro de queimado, vou pra cozinha, a caneca secou, suspiro, boto mais água, faço o café, volto para a frente do computador, sete e quarenta.
Escrevo duas linhas, estou longe de sentir o texto fluir, mas daqui a pouco ele começa a fluir como as linhas anteriores, ah, as linhas anteriores estão excelentes, ah, elas que me dão força agora, os parágrafos estão fodas, as páginas estão fodas, olha que foda o que escrevi aquele dia, meu Deus, que dia é hoje, meu Deus, eu não paguei a escola da minha filha, putz, perdi o prazo pra mandar a autorização pra excursão dela? Ligo pra escola, ufa, é pra mandar amanhã, deixo anotado pra não esquecer, volto a lamentar por não ter pagado a escola, por que não pago as contas no dia certo, que dia é hoje mesmo, nossa, é aniversário de uma das minhas melhores amigas, preciso escrever, mas né, preciso ligar pra minha amiga, pego de novo o telefone, ah, que coisa boa é papear com ela, aiaiai, não acredito, oito e quinze já?
Bom, chega, agora vai. Quer dizer, precisa ir, né. Afinal, eu acordei às seis da manhã para, às sete, estar na frente do computador, como estou agora. Eu não posso ser tão idiota, certo? Acordar cedo para não escrever nada. Caramba, olha essa cara de cansaço. Credo, olha o estado desse pijama, essa cara de cansada combinada com esse pijama desbotado tá fazendo com que eu me sinta velha antes do tempo, que horror, se era pra ficar à toa eu devia ter aproveitado pra dormir mais, eu devia cuidar mais de mim, eu devia ter ido à academia, aliás, o dia rende mais quando eu malho, eu estaria jorrando rios e rios de caracteres agora se tivesse malhado, não é à toa que conheço tanto escritor que faz exercício, quer dizer, sei lá se é mais comum encontrar escritores que façam exercício do que, digamos, professores, dentistas, mas o ponto é que sinto que o exercício dá uma oxigenada, não é possível, são oito e quarenta, não é possível!
Olho para o computador sem entender. Como eu, que, tecnicamente, AMO escrever, que sempre quis ser escritora, que estou orgulhosa deste livro que ainda não é livro, consegui chegar às oito e quarenta tendo escrito apenas essas duas linhas que acabei de apagar? Que patética, eu. Que idiota! E, pra piorar, este livro não tá bom. Começo a reler as páginas: meu Deus, é pior que não estar bom, está uma coisa horrível! Que vergonha! Quem sou eu pra pensar que sou escritora? Que farsa, que vergonha… Por que fiz mais café, sendo que uma taça de vinho me deixaria bem mais calma, me diga? Bom, porque são só nove da manhã… Quer dizer, JÁ são nove da manhã, isso é ridículo, eu sou ridícula, eu que não sei escrever, que não fui à academia e que, ainda por cima, se for ao banheiro, não vou ter papel higiênico. Como se não bastasse não poder afogar meus white people problems num pote de sorvete…
Fecho o computador e levanto, derrotada. Resolvo tomar um banho. Está cedo demais para um vinho, mas um banho morno, quase frio, nesse calor, vai me fazer bem.
De cabelo molhado, vestidinho e me sentindo jovem, faço mais um chá e começo a sentir dentro de mim um frescor, uma alegria, uma sensação de vitória por algo que ainda nem chegou, mas que eu sei que chegará: vou escrever. Eu sou capaz de escrever, não sou? Vou escrever, sim, ah, se vou! E vou pagar as contas em dia. E lavar essa louça, Jesus, que pia bagunçada, só reparei agora. Quer saber? Eu vou lavar essa louça agora. E vou comprar aquele pacote gigante de papel higiênico que eu nunca compro porque dá um trabalhão pra carregar. Nunca mais vai faltar papel higiênico no meu banheiro. Aliás, vou economizar para finalmente reformar meu banheiro. Vai ser tudo fácil, porque meu livro vai vender muito, vou ter dinheiro para reformar o banheiro e, além disso, vou desfrutar da minha nova fase com bastante serenidade, porque vou praticar mindfulness. Vou me organizar. Vou pagar as contas em dia. Vou me alimentar melhor. Vou ser uma pessoa melhor. Vou ligar mais para a minha mãe. Vai dar tempo! De reformar a casa, de escrever um puta livro, de ter um ano sensacional. Puxa, é claro que vai dar tempo. Ainda é carnaval, o ano ainda nem começou!
Eu ainda não entendi bem como isso aconteceu, mas agora são onze da manhã e eu não escrevi nenhuma linha nem fui para a redação, porque estou na rua, andando meio desajeitada, mas rindo de orelha a orelha, enquanto carrego um pacotão gigante de papel higiênico.
Liliane Prata é editora de CLAUDIA e escreve semanalmente no site. Para falar com ela, mande um e-mail para liliane.prata@abri.com.br