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Diário De Uma Quarentener

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Juliana Borges é escritora, pisciana, antipunitivista, fã de Beyoncé, Miles Davis, Nina Simone e Rolling Stones. Quer ser antropóloga um dia. É autora do livro “Encarceramento em massa”, da Coleção Feminismos Plurais.
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Infâncias interrompidas

Ao ver Wynta-Amor e pensar em Miguel Otávio, fico pensando em tudo que esse sistema de desigualdades obriga crianças negras a passar

Por Juliana Borges
5 jun 2020, 21h09
 (MoMo Productions/Getty Images)
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São Paulo, 05 de junho de 2020

Estou desde ontem tentando sintetizar sobre o homicídio de Miguel Otávio Santana da Silva. Muitas são as questões que me atravessam nisso tudo. Primeiro, porque é a história de uma mãe negra que, diante de tantas dificuldades e barreiras sociais, precisava trabalhar e garantir o sustento de si e dos seus e eu não sei nem mensurar a dor que essa mãe, Mirtes Renata Santana. Segundo, porque minha área de trabalho é sobre violência no Brasil e minha temática de pesquisa é Política e Justiça Criminal, relacionando às questões raciais. E são tantas as questões a se discutir nesse caso, que, além de estar trocando com várias colegas e amigas de área, ainda tem o elemento do impacto na saúde mental, que é o terceiro elemento disso. É de esgotar, a gente pensar que vai conseguir dar conta das coisas e se deparar com uma notícia com essa.

Muita gente tem me pedido para me posicionar sobre o caso. E eu só consigo pensar em Mirtes nesse momento. Eu sou consigo pensar em Miguel, querendo sua mãe, porque certamente não se sentia confortável no ambiente, não recebendo os cuidados necessários a uma criança de 5 anos e em tudo que foi ceifado de vida para ele. Nesse momento, eu quero desejar afeto a essa mãe, aos familiares e a todos que conviviam e amavam Miguel.

Isso não significa que algumas coisas não possam ser ditas. Sari Corte Real, a empregadora, tem responsabilidades que não podem ser negadas. A negligência certamente foi permeada por uma visão que perpetua a Casa-Grande-Senzala, como apontou Djamila Ribeiro. O que tanto uma criança te irrita ao ponto de você deixá-la sozinha, em um ambiente que a criança pouco conhece? Além disso, há diversas questões sendo analisadas, como o fato da empregada, Mirtes, e todos de sua família terem sido infectados pelo novo coronavírus, porque a lógica de que é preciso uma empregada doméstica faz com que se obrigue ao trabalho, sendo que um serviço não essencial. A empregada deixou claro que se não trabalhasse, não receberia. Como uma pessoa que tem recursos para uma fiança de R$20 mil reais, não tem condições de garantir que sua empregada fique em casa durante a quarentena? Muito nesse caso suga minha energia mental e me indigna.

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Este vídeo desta linda garotinha negra gritando “NO JUSTICE, NO PEACE!” [“Sem justiça, sem paz!”] num protesto antirracista nos EUA viralizou nas últimas 24 horas com muita gente admirando a coragem inspiradora da criança . Mas um tweet interessante sobre o vídeo também se tornou viral ao comentar a cena é a reação das pessoas. A creator Cindy Noir chamou a atenção para que as pessoas não romantizassem a cena pois não deveria ser normal ver uma criança tendo que protestar pela própria vida . Pelo twitter, ela escreveu: “Por favor, não transformem esta cena numa narrativa romantizada de ‘como ela é forte’. Nenhuma CRIANÇA deveria protestar pela sua própria vida. Isto é triste, não uma história de bravura. As crianças negras não deveria ter que se preocupar com este tipo de coisa”. Achamos uma importante reflexão, e qual a sua opinião? #AEQSE #BlackLivesMatter #VidasNegrasImportam

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O que me leva a um outro caso, de uma outra criança. Wynta-Amor Rogers, de 7 anos. Essa brava garotinha viralizou nas redes sociais ontem porque foi gravada enquanto protestava corajosamente com seus familiares pelo fim da violência policial contra negros nos Estados Unidos. Em um primeiro momento, eu só consegui pensar que Wynta-Amor era a filha que desejaria ter. A cena, me remeteu à minha infância, quando minha mãe me levou para a marcha dos 100 anos da abolição, quando negros protestaram em relação a continuidade de um sistema de marginalização dos negros e negras do país. Minha mãe me dizia que eu empunhava os braços e as mãos e acompanhava todas as palavras de ordem da marcha. Assim como Wynta-Amor.

Ao ver Wynta-Amor, caí em lágrimas. Primeiro, pela emoção daquela forte cena. Depois, por pensar na absurda situação de uma criança, tão pequena, já carregar tanta indignação e dor. Que sistema é essa que impõe a uma criança negra ter de sair para lutar por sua vida e pela vida dos seus? Que sistema é esse que rouba infâncias? Que nos enche de raiva, que nos despedaça mentalmente, que nos asfixia, que nos aponta armas? Wynta-Amor tem “amor” em seu nome, mas já carrega uma imensa e profunda dor. Miguel Otávio Santana da Silva teve sua vida, ainda tão tenra, ceifada porque há um sistema que faz com que um grupo se ache tão superior a ponto de não compreender que uma criança de 5 anos não terá discernimento e senso de proteção como um adulto teria. Um sistema que nos tira sonho, nos tira o ingênuo tão próprios do infantil.

Ao ver Wynta-Amor e ao pensar em Miguel Otávio, eu fico pensando em tudo que esse sistema de desigualdades obriga crianças negras a passar, em tudo que esse sistema de desigualdades impede crianças negras de viver. Algo que me cansa, mas só por alguns instantes. De algum modo, terei que encontrar forças. Por Wynta-Amor, por Miguel Otávio, por Ágatha Félix, por João Pedro…

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