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Entre Linhas, por Nara Vidal

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Nara Vidal é autora dos romances “Eva” e “Sorte”, e do livro de contos “Mapas para Desaparecer”. Nascida em Guarani (MG), ela é formada em letras pela UFRJ com mestrado em artes e herança cultural pela London Met University. Direto de Londres, escreve para CLAUDIA sobre as múltiplas experiências da vivência feminina.
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O corpo do verão

Uma viagem pela memória de um verão que já passou — e o que mudou até aqui em relação à auto imagem e o ideal de corpo perfeito

Por Nara Vidal
Atualizado em 5 fev 2023, 08h47 - Publicado em 5 fev 2023, 08h00
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  • Estou no Rio de Janeiro. Estou numa varanda que dá para a Avenida Atlântica. Estou aqui porque vou escrever sobre o hotel onde estou, o PortoBay Copacabana. Não é neste texto que vou elaborar sobre a qualidade do hotel, a piscina, o azul que olho da mesa de escrever do meu quarto. Mas daqui do hotel, vejo, além do mar, a praia, a mesma onde eu fazia corridas diárias antes de ir para o trabalho, no final dos anos 1990. Mas, lá, naquela praia, eu corria não porque eu me cuidava; eu me exercitava porque eu odiava o meu corpo e queria mudá-lo. Acredite: tenho pena de escrever isso, mas a verdade é que eu detestava a imagem refletida no espelho, nas vitrines das ruas e, consequentemente, nos meus gestos inseguros.

    Daqui, desta varanda inquestionavelmente espetacular e com a praia de Copacabana aos meus pés, vejo a moça de uns vinte anos, cabelos de sol. Ela para, bebe uma água de coco. Eu gostaria muito de dizer para ela se tratar bem, mas ela não me escuta. Ela é severa e se vê com tanta indelicadeza que me contraria encontrá-la ali, no calçadão, tão rígida por dentro, tão dura com aquele corpo perfeito que ela carrega como se fosse punição, como se precisasse ser modificado, como se a sua total existência dependesse de um corpo que nunca vai ser o seu.

    Saio da varanda, pego meu protetor solar, óculos e atravesso a rua em direção à praia. Na areia, vejo gente de todos os jeitos. Pessoas e seus corpos de praia perfeitamente imperfeitos, extraordinários como são todos os corpos. Sentada na areia, eu observo. Ainda é possível ver, mesmo nos dias de hoje, homens que olham corpos de mulheres como se fossem pratos de comida. É surpreendente a falta de noção de alguns desses olhares predatórios. Sempre me questiono sobre o tamanho da autoestima masculina que olha o corpo de uma mulher e que não se importa em ser visto, precisamente, flagrado olhando esse corpo como se isso propagasse sua virilidade, claramente frágil. Poucas coisas me constrangem tanto quanto isso. 

    Fico na praia por cerca de meia hora. O sol do Rio já começa a queimar a minha pele. Pele que a moça dos vinte não vestiu, que rejeitou, que maltratou ainda que fosse a sua e a única que tivesse. O curioso é que, agora, depois desses anos todos e depois de ter sumido, quem junta os restos da bagunça dela sou eu. 

    Talvez, hoje em dia, estejamos educando meninos e meninas mais confiantes, mais gentis, mais espertos. Ainda assim, conheço poucas mulheres que têm uma relação de total harmonia com seus corpos, qualquer que seja a idade. A repressão de gênero e as expectativas malucas que colocamos nos nossos corpos são o nosso consentimento para aceitar aquela ladainha patriarcal que só faz bem para estrutura machista na qual ainda firmamos os nossos passos.

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    O corpo, afinal, é o que vemos de imediato, é a casca, é o que nos apresenta na superfície das coisas. É ele que sofre julgamentos impensáveis, cruéis e que acumula no estresse, nos ombros encurvados, na postura pobre, no andar tímido, nas mãos cruzadas sobre a barriga, nas roupas largas demais ou justas demais a insegurança que passamos a carregar como se fossem braços e pernas. 

    Mas o bom da vida é que, com sorte, ela nos dá tempo. 

    O corpo do verão
    (Jacub Gomez/Pexels)
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    Diante das expectativas e da auto sabotagem de quem fui aos vinte e poucos, certamente este corpo aqui não serviria. Ele envelheceu, ele se alargou, ele teve filhos, ele tem cicatrizes, ele ama, ele passou por tanto. Mas, por outro lado, aquela moça que caía em todo tipo de armadilha contra seu bem-estar, também parece já não me alcançar. 

    Quando me lembro dela, penso nas inúmeras vezes que não tirou a roupa, de vergonha, para sentir o prazer de perto, nas vezes que se cobriu na praia pelo que os outros iriam pensar do seu corpo. De onde vinha tanta dureza consigo mesma, tanto julgamento?

    E as revistas que nos diziam que, em uma semana, poderíamos ficar em forma para o verão? E o corpo em forma das revistas que nunca era o seu! E os relacionamentos com homens machistas que criticavam qualquer coisa que fosse no seu corpo perfeito? Os pelos, as unhas, os cabelos lisos, os cabelos anelados, os peitos à mostra, os peitos escondidos, os pés doídos pelos saltos. Uma exaustão, uma violência, um auto abuso Para quê? Para quem? 

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    Olho daqui da praia e, confesso, sinto uma melancolia por ter, essa moça, perdido tanto tempo com o que nunca existiu. Pode ser que não seja tão inteligente repetir a dureza contra si mesma. Então, procuro um elo, uma interseção entre mim e ela, e entendo que pode ser o autoconhecimento, o conhecimento, o reconhecimento do próprio corpo e, enfim, o tempo.

    Foi ela que abriu caminho para explorar sensações que se eu não tivesse experimentado, talvez estivesse reprimida. Foram os seus passos tímidos, mas irreversíveis que me trouxeram aqui, que buscaram relações um tanto quanto hedonistas, e que me salvaram do véu do desconhecido. Corajosa, verdade seja dita. Insegura, dupla verdade seja dita.

    Não é possível que sejamos a mesma pessoa, que nossos corpos sejam o mesmo. Mas, consigo me encontrar com ela. Penso no dia de verão, aqui mesmo, em Copacabana, quando, depois de passar o dia na praia, chegou em casa, descascou a pele queimada e ganhou muitas sardas na parte de trás dos joelhos.

    Olho para essa parte do nosso corpo e nos vejo. Toco as pintas, são muitas. Finalmente, entramos num acordo: beleza é este corpo vivo, é a luz nele, é o sal do mar gelado, é namorar homens ou mulheres feministas, é conseguir deixar os exames de saúde em dia, é sentir prazer através do único corpo possível, é poder pagar o dentista, é conversar sobre política, é votar e é apreciar arte. E daqui da varanda, beleza é também o Rio.

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