De pai para sua filha bailarina
A colunista Flavia Viana bate um papo com a bailarina Ana Botafogo sobre seu novo livro, uma homenagem de pai para filha
Que homenagem poderia ser mais emocionante do que um pai narrar, através de um livro de quase mil páginas, a trajetória de sucesso de sua filha bailarina? Aliás, um dos maiores nomes da dança do nosso país, a primeira bailarina do Theatro Municipal do Rio de Janeiro desde 1981, Ana Botafogo.
“Meu pai levou dez anos para falar que ele ia fazer algo. Ele já tinha muita coisa reunida com ele. Eu só fui ver e ler quando o livro estava quase pronto, meu pai já estava terminando. Isso foi quase em 2010”, explica Ana.
O livro Ana Botafogo: palco e vida se trata de um olhar carinhoso de um pai para a carreira vitoriosa de sua filha.
“Tive a percepção que a Ana se tornaria uma bailarina profissional quando ela foi a única participante classificada em uma audição para entrar em uma companhia de ballet francesa”, relembra o Sr. Ernani Ernesto, pai de Ana.
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O médico cirurgião acompanhou cada passo dos 45 anos da trajetória de Ana pelos palcos do Brasil e do mundo. Em todo esse tempo ele reuniu um material único e exclusivo que emocionou toda a família.
“Minha família está muito empenhada e muito emocionada com esse feito do meu pai. Aos 95 anos ter essa alegria e concretizar esse sonho. Porque era um sonho dele ter esse livro pronto. Escrever sobre uma artista brasileira que por coincidência é a sua filha. O livro tem esse olhar e esse carinho de meu pai, ele está deixando um legado”, relata a bailarina emocionada.
Baseada em recordações, registros da imprensa e numa minuciosa pesquisa do médico, que levou cerca de 15 anos, a publicação reconstrói momentos marcantes da vida pessoal e profissional da primeira bailarina, como o protagonismo em espetáculos clássicos, como “O lago dos cisnes”, “Giselle”, “Coppélia” e “O quebra-nozes”, entre muitos outros. A vivência de quatro décadas no Theatro, que Ana celebra este ano, está impressa em 908 páginas.
“Neste livro, proponho contar a história que ainda não foi contada e que, presumivelmente, jamais seria, pois, em grande parte, pertence ao acervo exclusivo de minhas recordações e de minha vivência. O que sei, o que vi, o que senti e o que muitas vezes deduzi da vida particular e artística de minha filha, durante os anos em que eu e sua mãe a acompanhamos quase dia a dia”, conta o pai-autor, no prefácio.
Conversando com Ana, a bailarina relembrou momentos especiais com o pai na infância e também expôs sua felicidade em comemorar também seus 40 anos de Theatro Municipal junto com o lançamento do livro.
“Eu ainda lembro do meu primeiro espetáculo aqui no Theatro, eu chegando para fazer Coppélia. Nossa, eu estava muito aflita, era meu primeiro espetáculo, eu tinha 23 anos e estava muito nervosa, mas muito feliz porque era uma conquista de ser uma primeira bailarina do Theatro Municipal do RJ, então foi uma conquista”, relembra.
Sr. Ernani, aos 95 anos, começa o livro relatando o nascimento de sua filha, no dia 09 de julho de 1957, na Casa de Saúde São José e confessa que torcia pela chegada de um menino. “Ele esperava que fosse um menino sim, mas aí veio uma menina (risos). Mas hoje sou eu e meu irmão, então ele realizou o sonho dele”, explica Ana sorrindo.
“Minha família sempre me apoiou muito na carreira. Meu pai é um entusiasta, e fez uma pesquisa enorme sobre tudo o que fiz. Não buscou informações só sobre mim, mas sobre tudo o que aconteceu de mais importante na dança no Rio, no Brasil e no Theatro Municipal. O livro tem cada gota do meu suor, e o apoio do Bees of Love foi fundamental para viabilizá-lo. As ações do Instituto são muito bonitas e relevantes, e têm tudo a ver com um propósito meu de carreira, que é de levar cultura a quem não teria acesso a ela”, diz Ana.
A profissão de Ernani, médico, influenciou na escolha do projeto que será beneficiado pela venda do livro. O Instituto Bees of Love, que atua em várias frentes sociais, optou por destinar o recurso para reformar uma das mais importantes maternidades do Rio de Janeiro, que atende cerca de 200 mulheres por mês, moradoras de comunidades como Rocinha, Vidigal e Rio das Pedras, e precisa modernizar as instalações.
“Ana é uma grande parceira do Bees of Love, por ter o mesmo desejo que nós de mudar a realidade de quem mais precisa. Reformando a Maternidade do Miguel Couto, podemos propiciar dignidade, conforto e cidadania a milhares de mulheres no momento mais bonito de suas vidas”, diz Georgia Buffara, fundadora e presidente do Bees of Love.
O Instituto já tem uma história de parceria com Ana Botafogo. Uma das ações que fizeram juntos foi uma gala solidária no Theatro Municipal, em dezembro de 2019, a fim de levantar recursos para a reforma da cortina da boca de cena do palco.
“É muito bom quando a gente tem uma profissão e através dela a gente consegue ajudar. Fico feliz que através da minha dança e da minha arte eu posso ajudar o próximo. A gente tem muitas maneiras de ajudar, desde fazer uma gala de dançar e angariar fundos, até a de dançar, levar alegria, prazer, contentamento, que também é uma maneira de ajudar”, explica a primeira bailarina.
Confira logo abaixo a entrevista exclusiva de uma das maiores bailarinas de nosso país. Ela fala de carreira, escolhas e emoções que viveu com seu pai desde a sua infância:
Claudia – Qual o seu sentimento como filha e bailarina de ser homenageada pelo seu pai através desse livro?
AB – Claro que é uma grande emoção desde o começo. Primeiro ele me disse que estava fazendo uma pesquisa, que ele ia escrever algo um dia, e a gente achava que ele realmente estava fazendo uma pesquisa e organizando a minha vida.
Mas aí quando a gente viu o material que já tinha, que o livro começou a ficar pronto, porque ele nos deu os rascunhos para lermos, conseguimos ver a quantidade do acervo que ele tinha, e confesso que eu não lembrava a quantidade de coisa que eu já tinha feito e que eu já tinha dançado tanto. Porque a gente não tem essa noção, a gente vai vivendo a vida. E agora com esse registro eu estou muito emocionada de ter tudo isso, é absolutamente tudo que eu dancei até um determinado momento, está tudo comprovado pelas matérias de revistas, jornais e de críticas. O que é muito bom porque dá uma legitimidade, mas também uma certa temporalidade, porque aí sabemos o dia, aonde foi…
Com isso ficou não só as minhas memórias, mas um registro da dança dos últimos 40 anos, mas sobretudo, ficou um registro para mostrar para as gerações de hoje como foi esse período, o que se fez e como se fazia em outra época. Em momento de pandemia fazer todos lembrarem de como dançávamos, do quanto ficávamos no palco, porque isso é uma coisa que a gente está sentindo muito.
Claudia – Quando começou o interesse do seu pai pela dança?
AB – É mais comigo mesmo, sendo eu a filha, mas ele começou a gostar de dança por causa da minha mãe que gostava muito e que tinha aprendido ballet quando jovem, mas depois ele começou a participar a partir do momento que eu era uma menina bailarina que ele assistia os espetáculos. Primeiro sem entender e ter noção de que eu poderia me tornar uma artista. Eu acho que demorou um pouco pra ele entender. Essa realidade se tornou verdadeira quando realmente eu tive o meu primeiro contato profissional. Quando eu estava na França e recebi o meu primeiro contato para dançar em uma companhia francesa (Marselha). E aí eu acho que caiu a ficha de que eu ia me dedicar a isso. Ele viu que a minha dedicação ia ser integral e eu nunca mais parei…
Claudia – Você sempre pensou em ser bailarina?
AB – Pensei sim. Na verdade, quando eu tive o meu primeiro contrato eu já cursava a faculdade de Letras porque eu imaginava que eu ia fazer tradução simultânea. Que eu seria uma tradutora de conferências inclusive internacionais. Isso era o que eu gostava. Eu tinha duas grandes paixões, uma eram as línguas e em um outro momento eu gostava muito de astronomia, imagina, eu seria uma astronauta? (risos). Mas na realidade, eu me interessava, mas nunca estudei nada, nunca me dediquei a nada da área. Se eu não tivesse sido bailarina eu certamente teria terminado a minha faculdade de Letras e faria algo ligado a línguas ou faria Relações Internacionais como uma segunda faculdade, mas a vida logo mudou. Não terminei essa faculdade, mas em 2007 eu me formei em licenciatura em Dança.
Claudia – Você e seu pai possuem um repertório de dança preferido?
AB – Na realidade meu pai e minha mãe sempre foram muito corujas. Eles eram o meu melhor público, e me assistiam em todos os espetáculos. Eles eram bons críticos porque podiam me dizer também o que estava bom, em um dia, no outro não.
Mas o meu pai sempre gostou mais dos grandes clássicos, quando eu interpretava uma personagem. Giselle, Coppélia, Lago dos Cisnes, etc. Tudo que tinha história eram ballets preferidos deles e também são os meus, mas são os dele também. Ele gosta muito de ballet clássico…
Claudia – Como é pra você trabalhar para ajudar? Usar a sua imagem para fazer o bem?
AB – É muito bom quando a gente tem uma profissão e através dela a gente consegue ajudar. Fico feliz que através da minha dança e da minha arte eu possa ajudar ao próximo. A gente tem muitas maneiras de ajudar, desde fazer uma gala e dançar para angariar fundos, até a de dançar, levar alegria, prazer, contentamento, que também é uma maneira de ajudar. Então eu ao longo da minha carreira fui muito feliz em muitos momentos que eu pude através da minha dança ajudar o próximo de diferentes maneiras. É muito bom, ver as pessoas felizes e emocionadas com o que você tem para dar. Porque as vezes parece singelo porque eu tenho a minha dança pra dar, mas ela é feita com muito amor e muita dedicação e do fundo do meu ser. Porque eu sempre quis levar esse amor que eu tenho pela dança para que as pessoas tivessem amor pela vida delas próprias. A dança me proporcionou isso. E agora com a Bees of Love as pessoas estão disponíveis para ajudar e elas fazem isso de muitas maneiras para concretizar um resultado monetário que é necessário também.
Claudia – Entre tantos momentos com seu pai, um especial…
AB – Sempre fomos muito família. A minha primeira viagem internacional que ele fez questão de nos levar, eu, meu irmão, minha mãe, eu queria ver neve, eu me lembro quando ele me levou para um passeio na neve, eu queria que ele parasse o carro na hora para poder ver um pouquinho dela e ele dizia que ia me levar para ver uma montanha de neve, mas eu queria que ele parasse para eu ver aquele bolinho de neve que estava ali na estrada. Ele tinha muita paciência com a gente… Outro momento emocionante foi quando ele me levou em meu casamento, nós dois, ele me levando no altar, eu me lembro muito disso e eu acho que ele estava nervoso e emocionado também. São várias lembranças… Meu pai e minha mãe sempre gostaram da família por perto então são muitos encontros familiares muito felizes…
Claudia – Fala pra gente dessa comemoração de 40 anos de Theatro Municipal…
AB – Eu ainda lembro do meu primeiro espetáculo aqui no Theatro, eu chegando para fazer Coppélia, muito aflita, meu primeiro espetáculo, acho que eu tinha 23 anos, eu estava muito nervosa, mas muito feliz porque era uma conquista de ser uma primeira bailarina do Theatro Municipal do RJ, então foi uma conquista. Mas eu diria que foi um desafio de 40 anos me manter nessa posição, foram anos e anos de árduo trabalho, dançando nesse palco e agora eu tenho outras funções aqui. Eu já dirigi a companhia durante três anos, às vezes sendo ensaiadora, às vezes nos bastidores, dando visibilidade a companhia, o trabalho continua. Agora mais nos bastidores, mas sempre com a dança ao meu lado.