Quero começar esse texto dizendo que ter essa coluna em Claudia é um grande privilégio. Lembro bem da minha estreia, confesso que fiquei emocionada e ainda fico a cada texto publicado! Aqui consigo dividir com todos o meu amor pela dança, e também tenho a oportunidade única de fazer entrevistas lindas e inesquecíveis, além de compartilhar tudo ligado a esse universo. Por aqui, também divido muitas vezes o palco com uma grande amiga e parceira, também apaixonada pela dança e pelo ballet clássico, a querida Ana Cláudia Paixão. Dessa vez, no Dia Internacional da Dança, nós duas tivemos a honra de entrevistar ninguém menos que a maravilhosa e maior bailarina do país, Ana Botafogo.
À minha parceira Ana Cláudia, passo a palavra e também o nosso sentimento mútuo no dia de hoje…
Já é tradição minha e da Flavinha compartilhar nossa paixão pela dança, em particular o balé clássico, nas nossas colunas aqui em CLAUDIA, em especial todo 29 de abril, que marca o Dia Internacional da Dança. Para recapitular, como já escrevi em 2020, a data tem um significado especial, é o aniversário de Jean Georges Nouverre, o criador do ballet. E, em 2023, ganhamos um presente. Conversamos com ninguém menos do que a mágica Ana Botafogo, ícone da dança clássica nacional, referência para todas bailarinas e a quem eu tive o privilégio de ter visto dançar em várias ocasiões. Sou transparente com vocês: sou fã e Flavinha idem, nós duas amamos a Ana!
CLAUDIA: No Dia Internacional da Dança podemos já começar a ver o futuro da dança clássica no contexto atual?
ANA BOTAFOGO: Não é só como eu vejo, é como eu espero – tenho esperança que continuem sendo os grandes clássicos, continuem sendo referência e que continuem sendo levados para que as novas gerações possam conhecer. Eu acho que, apesar da gente gostar de algum trabalho novo, a gente não pode esquecer ou abdicar do que foram os grandes clássicos. A gente tem grandes diáconos pelo mundo que preservam essa tradição, como a ópera de Paris, como Royal Ballet de Londres, como o American Ballet Theatre e como o próprio Bolshoi, na Rússia. Eles fazem coisas contemporâneas, mas eles não deixam de levar os grandes clássicos, que são obras de arte até hoje reconhecidas como um primor da coreografia. A gente precisa continuar. No Theatro Municipal do Rio sempre fomos os responsáveis por manter essa tradição para relembrar e para mostrar para as novas gerações.
CLAUDIA: A cobrança pelo novo é natural, mas clássico é clássico, né?
ANA: Às vezes me perguntaram “ah, por que “Giselle” de novo? Por que “O Quebra-Nozes” de novo? Mas por quê? Não tem outra coisa pra fazer?” Não! (risos) Até tem, mas a gente vai fazer de novo porque a gente precisa mostrar para gerações que vão chegando, pro novo público, e isso tem que ser tradição.
CLAUDIA: E como é alimentar/manter essa tradição?
ANA: Nas minhas palestras falo pros jovens e quando falo sobre vida de bailarina, quando conto a minha história, estimulo jovens que agora cabe a eles. Mesmo enquanto fui bailarina, pensei nessa popularização do balé clássico o tempo todo, ir além de fazer os grandes clássicos e levar técnica clássica com uma música popular brasileira, levar pros palcos ao ar livre. Digo isso aos jovens, ‘agora sou plateia, mas eu quero vê-los fazendo esse movimento que é o de preservar a dança clássica’. Porque é a questão da técnica, né?
CLAUDIA: Sim, parece que as pessoas esquecem um pouco que desenvolver a técnica demanda repetição, que ela é importante tanto para o amadurecimento do movimento, daquele que você quando começa na barra ainda criança, e que só à frente entende toda a lógica da aula, toda a lógica daquele passo…
ANA: … e que é na repetição que se amadurece, e que são nessas obras que ficaram tão perfeitas que é possível, né? Leva um tempo, porque a gente não aprende um passo um dia e no outro já o faz maravilhosamente bem. Não. Tudo é um processo de anos de estudo, e a própria criança vai aprendendo aos poucos os passos de balé até a gente poder ser mestre de todos esses movimentos.
CLAUDIA: Há quem acredite que a limitação da Dança Clássica tenha esbarrado com a demora na inclusão, com temas de fadas e princesas. Mas a dança foi criada na Europa e num período onde os problemas sociais ainda não eram endereçados. Como você avalia esse tema?
ANA: Temos que transcender qualquer preconceito e focar em ser um bom artista. Sobre o biotipo físico, é normal que possa ter alguém que quis muito fazer balé clássico, mas não se encaixou. Mas há o contemporâneo e outros caminhos para ainda assim ficar na dança, desenvolver outras habilidades. Por exemplo, a Débora [Colker] sobe a parede, sobe não sei o quê e você tem que ter uma certa técnica que se me mandar fazer, não sei fazer! (risos). Por isso é complexo.
CLAUDIA: Como é ser Primeira Bailarina há tantos anos? [Ana é primeira bailarina do Theatro Municipal do Rio desde 1981]
ANA: Não danço mais já há dez anos, mas o título é vitalício, mesmo quando no aposentarmos, algo que já poderia ter feito, mas alonguei uns três anos e meio ainda trabalhando para o Theatro, fazendo participações, palestras, vídeos. É a minha missão. Durante trinta e cinco ou trinta e seis anos, dancei no Theatro Municipal, fiz grandes clássicos. É uma responsabilidade sempre estar à frente de uma companhia, porque é estar à frente de uma história.
CLAUDIA: E sua carreira é longeva e inspiradora…
ANA: Tive uma carreira longa, né? Me despedi dos palcos depois dos 50 anos dançando Onegin. Tive uma vantagem, porque nunca tive grandes machucados e não deixei de fazer aula, estava sempre em forma. Claro que eu fui deixando de fazer os grandes clássicos, depois dos cinquenta eu disse ‘olha, não quero mais fazer isso. Tem gente mais jovem para eles e vou fazer os outros balés da companhia’ e assim fui levando esse final da minha carreira, tudo muito bem resolvido, muito, muito feliz. Não saí angustiada, nem triste, era uma despedida, uma saída de palco. Foi vida dedicada à dança: acordava e era dança, exercício, aula, ensaios. Foi assim até o final.
CLAUDIA: Como está o presente e o que vem pela frente?
ANA: Sempre tem alguma coisa pra fazer. Eu ando fazendo tanta coisa! Dou aula, dou palestra, tenho uma escola [em Niterói], viajo pelo Brasil, estou no Dança dos Famosos no Domingão, tenho uma loja, ajudo a ensaiar… Estou no momento ajudando a Companhia de Dança de Curitiba na apresentação pelos 330 anos da cidade, estou trabalhando com a Companhia de Balé de São Paulo…
CLAUDIA: De todos os clássicos que dançou… faltou algum?
ANA: Sempre tem, um deles é Manon, há outros de Frederick Ashton, mas, olha, dancei tanto e fui tão feliz, mesmo depois quando já não dançava os grandes clássicos, que, queria ter dançado mais? Sim, talvez, mas sou muito feliz com tudo que fiz e faria tudo de novo.
CLAUDIA: Quem foram ou ainda são suas inspirações?
ANA: Márcia Haydée, talvez muitos por ela ser brasileira, mas sobretudo porque ela interpretava. Consegui dançar obras que ela dançou, ser ensaiada por ela ou pelo Richard [Cragun, parceiro lendário de Márcia], e além dela gostava da Maya Plisetskaya, daquela energia, quando entrava no palco e arrebatava a todos. Era isso que eu queria fazer da minha vida. E também Margot Fonteyn sempre foi uma referência.
CLAUDIA: Em 2022, seu pai publicou um livro com uma coletânea de entrevistas e apresentações, como foi todo esse trabalho?
ANA: Foi muito emocionante, porque demorou um pouco para poder publicar e aí, quando a gente estava com tudo pronto, entrou a pandemia! E papai envelhecendo, né? Até que surgiu a oportunidade e quando gente ia fazer o lançamento, ele caiu e quebrou o fêmur. Eu falei ‘ai meu Deus, papai vai morrer sem lançar o livro!’, mas deu tempo, papai lançou o livro e agora completou 97 anos, seguindo pra 98. Então foi uma alegria, acho que pra ele também. Só não é um livro de fotos, porque era um processo mais longo e temos que lembrar que boa parte da minha carreira não era digital. Mais ainda, infelizmente quando eu dançava era uma época em que era proibido filmar e morro de pena. Está tudo na minha memória, está tudo no meu HD aqui (risos), mas preciso de vocês pra contarem e falarem sobre essas memórias. Mas mais emocionante é que a primeira edição do livro foi feita em benefício das obras da maternidade do Hospital Miguel Couto, e no primeiro sábado de maio de 2023 teremos a inauguração. Claro que o livro não financiou ‘tudo’, mas conseguiu ajudar uma parte e estarei lá porque foi por uma causa muito legal.