A prática na advocacia criminal especializada em violências de gênero e o atendimento de inúmeras mulheres vítimas ao longo dos últimos anos me trouxe uma percepção, sobre a qual venho trazendo reflexões há algum tempo: vivemos a cultura da idealização da vítima perfeita.
Em uma sociedade estruturada pelos vieses patriarcais, contidos em todas as respostas esperadas das mulheres, também existem estereótipos e papéis sociais que fazem sintoma com essas estruturas tão fincadas em mentes e comportamentos, para dizer o mínimo.
É redundante, mas serve como breve introdução, dizer que crescemos sendo educadas a agir, pensar e interagir a partir de estereótipos de gênero.
Às mulheres, foi reservado o lugar de cuidadora, de dona de casa e mãe. Ainda que, para algumas, tenha havido estímulos familiares para o estudo e desenvolvimento da própria carreira, os papéis sociais acerca das respostas esperadas das mulheres sempre estiveram ali – na televisão, nas revistas, nos modelos de relacionamentos nos mais variados níveis -, isolados ou cumulados com o exercício profissional.
Me lembro bem de quando comecei a entender que meu corpo era um objeto outorgado, por uma sociedade que não protege meninas e mulheres, à satisfação dos desejos masculinos.
Eu tinha nove anos, morava na praia, e ao caminhar de biquini acompanhava os olhares dos homens que invadiam a minha privacidade e me faziam caminhar encolhida, constrangida. Em um desses episódios, fui seguida de carro por um amigo do meu pai, que lançava olhares estranhos a mim sempre que presente em minha casa.
Situações como essas marcaram as nossas existências, moldaram comportamentos. A psicanálise traz conceito interessante que pode ser aplicado aqui para compreendermos a profundidade dos traumas dessas violências: o entendimento do que vem a ser os significantes e suas interações com os traumas.
Os significantes integram a estrutura de linguagem do inconsciente, como uma teia, uma trama de informações que são registradas desde o início da vida e operam moldando a nossa percepção sobre a realidade.
Os mecanismos do trauma atuam como falhas na estruturação do inconsciente e podem levar a uma repetição compulsiva da situação traumática, ainda que por meio de expressões diferentes do evento traumático em si, como verdadeira tentativa de integrar por completo a situação de trauma no inconsciente.
Percebam, a partir dessa perspectiva, a importância de sustentarmos um ambiente livre de violências para o desenvolvimento das meninas e meninos. É no início da vida que papéis sociais passam a ser estruturados no inconsciente, muitas vezes consequências de micro ou graves violências experenciadas desde tenra idade.
A idealização da vítima
Dito isso, retornemos a análise da idealização da vítima perfeita, agora com alguma bagagem sobre trauma e mente, afinal, é no campo do inconsciente que se moldam os estereótipos de gênero que se manifestam em distorções de pensamento e comportamento.
Vale lembrar, inconsciente e consciente estão conectados e influenciam-se, mutuamente, o tempo todo, como entidades interligadas.
As pessoas, em geral, idealizam o comportamento das mulheres que se declaram vítimas de violência doméstica. Vimos isso acontecer em casos midiáticos recentes, como no caso da apresentadora Ana Hickman, que após denunciar passou a ser questionada com falas como “se fosse verdade não teria ficado tanto tempo casada”, “é rica e poderia já ter contratado advogado antes”, “como está trabalhando de volta se denunciou agora”, mas a verdade é que não existe comportamento predeterminado para sobreviventes de violência doméstica.
As respostas a essas violências são múltiplas, variáveis e fazem parte da maneira pela qual o inconsciente da mulher está estruturado, considerando significantes e respostas aos traumas. Por essas razões, algumas mulheres reagem dissociando, congelando ou fugindo.
Isso significa que podem agir como se nada tivesse acontecido, perder a memória sobre determinadas situações e bloquear, congelar, sem conseguir pensar, falar ou lidar com a situação.
Esse esclarecimento é importante, porque além do peso socialmente imposto sobre as sobreviventes, de um suposto dever de agir com clareza, firmeza e agilidade – como se fosse possível às vítimas agir de forma tão pragmática e somente assim houvesse validação de suas narrativas –, observo que as mulheres em situação de violência carregam uma grande culpa por supostamente falhar na gerência desses tais deveres que a visão patriarcal de mundo incutiu às tais “verdadeiras vítimas de violência doméstica”. Isso tudo é uma grande falácia.
Muito além do rompimento do ciclo de violência
A maior parte das mulheres em situação de violência doméstica está imersa em uma teia sistêmica de violências desde o início de suas vidas. Romper com o ciclo de violência doméstica exige autonomias emocionais que muitas ainda não detém.
Costumo dizer que o rompimento da violência é a ponta do iceberg, mas se puxarmos o fio, chegaremos a um mar de emoções e traumas profundos, ligados ao simples fato de ser mulher em uma sociedade que viola mulheres em todas as suas fases de vida.
Essa compreensão é libertadora. Para as vítimas, para a rede de apoio, para a sociedade. Não se reage como se idealizou que a reação deveria acontecer. Se reage como se é possível reagir, com as condições que cada existência detém.
Para que possamos garantir um ambiente pós denúncia com segurança emocional às sobreviventes de violência doméstica, precisaremos desfazer crenças, vieses inconscientes fincados em nossas estruturas individuais – corpo, mente e emoções – e coletivas. Ainda percebemos a violência de forma viciada. Pulsa em nós a estrutura patriarcal na qual crescemos inseridas.
No entanto, para a real garantia de segurança emocional pós denúncia, será preciso que ampliemos o nosso repertório e a nossa própria bagagem mental e emocional.
Um passo importante é respeitar as respostas individuais de cada vítima à violência. Será um passo e tanto. Para a assimilação dessa percepção, uma breve análise sobre os vieses inconscientes é necessária.