Num país onde mulheres não litigam em pé de igualdade com os homens no judiciário e mulheres das mais diversas carreiras jurídicas sofrem violências constantes por exercer seus ofícios nesse ambiente desnivelado, é preciso que (re)pensemos o acesso feminino ao sistema de justiça em breves linhas.
Há pouco tempo, sequer havia a possibilidade de discutirmos socialmente o tratamento desigual que mulheres recebem ao bater às portas do poder judiciário e das delegacias de polícia em busca de amparo. Falar sobre revitimização, ou sobre assédio processual, parecia utopia.
Avançamos. Nossa pauta tem sido posta à mesa. Mas, apesar dos ventos melhores, a realidade é que mulheres brasileiras ainda não encontram no sistema de justiça um espaço seguro e preparado para a real percepção, prevenção e enfrentamento das desigualdades de gênero.
Vítimas de violência sexual ainda são questionadas, ao denunciar os abusos, sobre suas roupas e seu comportamento na data dos fatos, ou se já haviam tido relações sexuais anteriores com o agressor, como se autorização perpétua para o toque naquele corpo-objeto existisse.
Se a violência sexual for denunciada em relação marital, o quadro é ainda pior. Os vieses inconscientes que sustentam o machismo estrutural limitam a percepção de que esposas sofrem constantes violências sexuais ao serem submetidas ao sexo indesejado, como se coisificadas fossem.
Para além dos crimes sexuais, a violência institucional que afasta as mulheres da justiça se manifesta nos mais diversos recortes. Denunciar violência psicológica ainda é um fardo, vez que o sistema de justiça criminal foi criado e pensado para oferecer respostas pragmáticas, fincadas em provas mais óbvias, observáveis a olhos nus. Apurar e comprovar os danos psíquicos e o abalo emocional requer que a vítima detenha condições para contratar escritórios de advocacia especializados, além de especialistas em saúde mental – caso contrário, falará ao vento.
Na seara da família, as disputas judiciais sobre alimentos, guarda de filhos e fixação de regimes de visitação ainda acontecem sem as necessárias lentes de gênero. Mulheres que renunciaram às suas carreiras profissionais por acordos estabelecidos no casamento, ao se divorciarem – sem autonomia financeira -, veem suas vidas mudar por completo. Enquanto os homens, que desenvolveram suas carreiras às custas do trabalho doméstico feminino, mantêm o padrão de vida anterior, às mulheres resta a reconstrução (do zero) da própria história – sobretudo se o regime de bens escolhido foi a separação total.
Quem devolverá a essas mães os 5, 10, 15, 20 anos de carreira sobrestada? Como considerar que mulheres que passaram todos esses anos fora do mercado de trabalho conseguirão, algum dia, alcançar o padrão de vida anterior?
Quando a disputa na seara de família envolve uma mulher vítima de violência doméstica que decide, também, denunciar as violências domésticas sofridas, o cenário é ainda pior. Sua narrativa é descredibilizada como se estivesse buscando instrumentalizar a violência que sofrera para obter êxito no processo que corre na vara de família.
Isso sem falar nas recorrentes acusações de “alienação parental” que, infelizmente, acabam sendo chanceladas por um poder judiciário que – ainda! – julga sem perspectiva de gênero. Esse é o panorama superficial do retrato da mulher que busca a justiça para acessar direitos. Acontece que existe uma sofisticação nas violências estruturais que limita ainda mais a possibilidade dessa mulher realizar seus direitos.
Falo sobre as violências processuais praticadas por homens e seus advogados, que distribuem incontáveis processos judiciais com a finalidade de aniquilar financeiramente as mulheres que mal conseguem custear escritórios de advocacia para pleitear alimentos para os filhos. Falo, também, sobre as mulheres que denunciam violência doméstica ou crimes sexuais e são perseguidas judicialmente pelos agressores, que as acusam falsamente de crimes não praticados como “estratégia de defesa”.
Mas falo, também, sobre a situação das mulheres das mais diversas carreiras jurídicas que atuam profissionalmente nesses casos. Essas mulheres sofrem cotidianas violências que se manifestam como perseguições públicas, exposição a situações vexatórias e até a distribuição de procedimentos judiciais e administrativos que questionam suas atuações profissionais.
Juízas, promotoras de justiça, advogadas, peritas, nenhuma dessas mulheres exerce seus ofícios com as mesmas garantias que exercem os homens. A resposta que fica é clara: o sistema de justiça não é espaço feito e pensado para as mulheres. Nossas existências não são bem-vindas lá.
As razões, muitas. Na condição de mulheres, fomos historicamente excluídas do processo de criação das leis, da filosofia, das ciências e dos símbolos. O registro sobre a nossa própria história foi distorcido, contado apenas pela metade masculina da humanidade.
Fomos impedidas de escrever a história e abdicadas a posições acessórias, secundárias. Até mesmo a conscientização feminina sobre a própria subordinação histórica caminha a passos lentos. Os vieses inconscientes, marcas profundas que dinamizam as nossas existências enquanto seres humanos, dificultam as nossas autopercepções sobre todas essas violências.
Precisamos avançar para garantir que mulheres sejam ouvidas pelo sistema de justiça. Sejam elas mães, vítimas ou profissionais que arduamente exercem seus ofícios.