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Samhain: uma “festa pagã” e milhares de mulheres condenadas à fogueira

Falar sobre o Samhain, Dia das Bruxas ou Halloween é refletir sobre a história das mulheres e uma perseguição histórica que é pouco compreendida

Por Izabella Borges
31 out 2023, 15h01
O Samhain celta, apagado pela intolerância religiosa, foi folclorizado, virou Halloween, mas jamais deixará de ser um marco de sofrimento e apagamento na história das mulheres (Tiko Giorgadze/Unsplash)
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O ano era 500 antes de Cristo. Os povos celtas já haviam se espalhado por toda a Europa, organizavam-se por clãs e cultuavam diversas deusas e deuses em rituais e datas comemorativas de épocas ainda mais antigas, desde mil e duzentos anos antes de Cristo. Das datas mais importantes, sobressai o Samhain, que marcava o fim do período de colheita e o início do inverno naquelas regiões, um momento no qual rituais eram estabelecidos para extirpar o mal e ancorar as forças superiores, em razão de crenças de que haveria um véu mais fino a separar o mundo humano do universo espiritual.

A data para os festejos de Samhain era regida pelo calendário lunar, muito anterior ao calendário gregoriano que conhecemos, que foi estabelecido pelo Papa Gregório XIII em 1582. No período de maior ascendência dos celtas, antes da estruturação do catolicismo no século IV depois de Cristo, as datas festivas eram determinadas pela posição do sol a partir do cálculo das fases lunares.

Na prática, o Samhain acontecia entre o equinócio de outono e o solstício de inverno, quando os dias e as noites tinham igual duração, e antes do dia mais curto do ano, que no calendário gregoriano equivaleria ao período entre 31 de outubro e 1 de novembro.

De lá para cá muita história aconteceu. A estruturação do patriarcado marcou um período de intolerância aos cultos às deusas, com a disseminação da ideia de que existiria apenas um deus, homem.

Naqueles tempos, as crenças populares davam conta de que as sacerdotisas respondiam às deusas, eram seu canal de comunicação com aqueles povos.

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O poder que essas mulheres acumulavam em razão de sua posição social as condenou, em um primeiro momento, a uma verdadeira perseguição social e política. Muitas foram mortas, outras fugiram e passaram a se organizar em florestas, em locais escondidos, onde poderiam seguir exercendo suas crenças e vivendo ao seu modo.

Com o passar dos séculos, a estruturação do catolicismo e a intolerância religiosa aos povos que ainda acreditavam em deusas e deuses diversos do deus católico se acentuou e adquiriu método, forma e regramento próprio.

Passaram a ser chamados de “pagãos”, de forma pejorativa. Vale lembrar que “pagão” vem do latim “paganus”, que significava camponês. Com a expansão do cristianismo como religião do Império Romano, o termo passou a ser utilizado para fazer referência àqueles que mantinham práticas religiosas antigas, vistas como supersticiosas, demoníacas e falsas.

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Mais adiante, em torno do século VIII depois de Cristo, onde as conversões ao catolicismo aconteciam em massa e com grande violência, em tentativa de converter mais pessoas que ainda cultuavam as deusas e deuses antigos, o Papa Gregório III estabeleceu a comemoração da festa de todos os santos, cujo objetivo era uma fusão de tradições e consequente sobreposição de crenças.

O ápice da intolerância religiosa e perseguição às mulheres, grandes detentoras da ritualística antiga, aconteceu no período conhecido como “Santa Inquisição”, entre os séculos XV e XVII, com a publicação do livro Malleus Maleficarum, conhecido como o primeiro discurso criminológico da história a autorizar o genocídio de pessoas.

No livro, traduzido para o português como Martelo das Feiticeiras, há a descrição de condutas que configurariam “pacto com o diabo”, figura mitológica em grande ascensão naquela época, período no qual as pessoas eram doutrinadas a viver em culpa, por medo do pecado e das consequências de condutas vistas como “caminho para o inferno”.

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Entre as condutas, há descrições de que as mulheres eram mais fracas, pois haviam sido criadas a partir de uma parte torta do corpo do homem, fazendo menção expressa à costela de Adão e aos supostos defeitos de Eva, que seria a primeira mulher, um ser inferior e mais suscetível a sedução pelo diabo.

Por serem vistas como fáceis alvos de “dominação pelo diabo”, absolutamente tudo o que faziam era categorizado como pactos com o mal, desde a mistura de ervas para a cura de pessoas doentes, o preparo de chás e até mesmo o trabalho das parteiras, já que se as crianças nascessem vivas, as parteiras eram “bruxas”, se nascessem mortas, era por “pacto com o diabo”. 

Nesse ponto, vale ressaltar que o exercício da medicina e da cura era restrito aos homens, afinal, em um período no qual era intolerada qualquer tipo de ascendência feminina, curar pessoas doentes pelas contaminações existentes não era um projeto político aceitável. Às mulheres da época cabia apenas a insignificância e a submissão.

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As penas para as mulheres que resistiam ao casamento ou não engravidavam, cuidavam de pessoas ou mantinham crenças diversas das católicas, eram cruéis. Afogamento, fogueiras, enforcamento, prisão, confisco de propriedades e mutilação.

Fossem elas parteiras, herbalistas ou curandeiras, a perseguição era determinada por gênero e buscava erradicar papéis femininos tradicionais, construídos ao longo de séculos, mantendo o controle do poder sobre o destino das mulheres nas mãos do Estado e da Igreja.

De lá para cá, o Samhain celta, apagado pela intolerância religiosa, foi folclorizado, virou Halloween, mas jamais deixará de ser um marco de sofrimento e apagamento na história das mulheres.

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Encerro a reflexão de hoje citando Silvia Federici em seu livro Calibã e a Bruxa, “as bruxas e as hereges foram as ativistas feministas radicais de seu tempo”. 

Por elas, por nós, pela nossa história, seguiremos resistindo.

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