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@fabianesecches Fabiane Secches escreve sobre cinema, literatura e psicanálise.
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Escritora Nara Vidal reflete sobre processo criativo e novo livro

A escritora brasileira se destaca não apenas por suas temáticas, mas também pela forma singular em que aborda as mais diversas narrativas

Por Fabiane Secches
Atualizado em 6 set 2024, 16h52 - Publicado em 5 set 2024, 17h00
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  • Nara Vidal é uma escritora habilidosa, versátil e prolífica. Entre contos, ensaios, artigos, romances e trabalhos com traduções literárias, vive experimentando com a linguagem e escolhendo contar histórias incômodas, que muitas vezes flertam com limites de gêneros, ou, no mínimo, se aproximam deles com uma abordagem própria.

    Profundamente comprometida com o fazer literário, ao qual se dedica há muitos anos, diz que está mais interessada em explorar a forma e a linguagem do que os temas de seus textos, embora não evite assuntos difíceis, incômodos e muito afinados com o nosso tempo, em especial a partir da perspectiva das mulheres.

    Conta também que não se preocupa em escrever uma literatura que traz conforto e alento, mas sim que provoca e causa desconforto, que pode gerar espanto, perguntas e conversas importantes sobre loucura e deslocamento, bem como sobre questões políticas e históricas brasileiras, a partir de uma perspectiva sempre singular e literária.

    Puro, seu novo romance recentemente publicado pela editora Todavia, apesar de indigesto, tem sido muito bem recebido por público e crítica, recuperando temas que fizeram parte de nossa história e, infelizmente, continuam vivos com a ascensão da extrema-direita mundo afora. Mas Nara Vidal escolhe abordar esses temas de modo que privilegia a forma, reforçando a ideia de que, numa obra, seja romance ou conto, mais importante do que se conta, é como se conta.

    Uma das ganhadoras do prêmio Oceanos, com seu romance Sorte, segue seu projeto literário provocador, defendendo que a literatura é um espaço de liberdade e experimentação. Formada em Letras no Rio de Janeiro e com um mestrado em Artes no Reino Unido, vive há mais de vinte anos na Inglaterra e, apesar da fluência em inglês, faz a escolha de continuar escrevendo em língua portuguesa, um movimento admirável, reafirmando o compromisso com seu país de origem.

    Nara Vidal conversou conosco sobre seu processo criativo, referências literárias e também, brevemente, sobre seu novo romance, que está por vir.

    Entrevista exclusiva  com Nara Vidal

    Fabiane: Você é uma grande leitora de Shakespeare e publicou recentemente um livro muito interessante sobre as personagens femininas tão bem construídas por ele (Shakesperianas, editora Relicário), um ensaio literário que evita academicismos e tem por objetivo aproximar leitores da obra do autor, bem como preencher lacunas sobre os estudos de suas personagens mulheres, ambíguas, instigantes, fundamentais para a compreensão da obra shakespeariana. Você diria que a pesquisa para a escrita desse livro, bem como suas releituras constantes de Shakespeare, influenciou decisões estilísticas de Puro, levando em conta a forma que escolheu para contar essa história polifônica e algo dramaturga?

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    Nara Vidal: Eu adoro essa pergunta porque ela ilustra a relação que eu tenho com a minha própria escrita. Não me lembro de escrever ficção (ensaios, sim, claro) com essa consciência do de fora para dentro. O que quero dizer é que a minha escrita de ficção é toda construída sem reflexão. Ou seja, enquanto estou escrevendo, não penso sobre aspectos que vou pensar depois, já num momento de releitura ou preparação de texto. A minha formação é em literatura de língua inglesa e, sem dúvida, o que nos compõe são nossas leituras, ainda que não saibamos disso de forma evidente.

    Por exemplo, outro dia, fiquei pensando que o que mais admiro na Virginia Woolf é a liberdade dela de transitar não só em gêneros diferentes, mas em experimentações e formas estéticas para seus trabalhos ficcionais. E por admirar tanto essa característica dela, busco, talvez sem ter exata noção disso, aplicar essa liberdade ao que eu também proponho como escrita.

    Shakespeare vem sendo uma leitura muito constante e já há vinte anos que estou na companhia dele sem parar. Tenho algumas pausas, mas ele está sempre por perto. Do Shakespeare, o que mais me fascina é justamente a construção tão minuciosa e humana das personagens. Ele não erra: são todas, particularmente as femininas, muito complexas, sempre transitando na bonita e fértil ideia de caos, do grego antigo, que é a indistinção entre sombra e luz, noite e dia, bom e mau.

    Portanto, é o retrato mais fiel do ser humano e é nessa indeterminação que mora toda a riqueza de uma personagem porque aí estão também as dúvidas, os conflitos, os pensamentos, o drama. A forma em Puro veio de uma maneira tão acidental que não ousaria dizer que é pensada em Shakespeare.

    Mas assim como escrevo sem muita reflexão durante o ato da escrita, consigo, por isso, sentir o som e o corpo dessa escrita. Uma prosa linear nunca funcionaria com o Puro. Faria dele uma proposta, do meu ponto de vista, frágil demais. Essa espécie de rubrica de teatro acabou dando a mim e às personagens uma liberdade de provocar, sugerir, especular, evitando assim explicações e didatismos que, na minha opinião, fazem uma proposta literária falhar.

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    Fabiane: Você também é uma leitora entusiasmada de outras mulheres, como Sylvia Plath, Katherine Mansfield (que você traduziu para editora Autofágica) e Virginia Woolf, mas também de suas contemporâneas. É bonito observar esse espírito de comunidade que norteia a relação de apoio e estímulos mútuos de grande parte das escritoras brasileiras. Você poderia contar um pouco de como se dá essa interlocução pra você?

    Nara Vidal: É verdade que o ato de escrever se faz sozinha. No entanto, o convívio, a leitura, a observação, as trocas são partes prévias fundamentais dessa mesma escrita. Essa mesma solidão, que eu acolho com prazer, é equilibrada com a presença forte e bonita de outras escritoras. Eu acompanho colegas e amigas com imenso interesse.

    Acompanho os passos, os caminhos percorridos, seus textos, opiniões. Algumas se tornaram e se tornam amigas e, então, acompanho a vida pessoal delas. Essa interlocução, além de ser rica, vem sendo muito interessante pra mim para que eu compreenda de forma mais profunda que não há competição entre nós. Eu falo de competição porque é um elemento que pode se tornar bastante tóxico em alguns cenários e nós, da literatura, não estamos imunes a isso.

    Há também toda uma construção do feminino que naturaliza a competição entre mulheres e isso é tão mesquinho quanto inútil. Mas eu venho de uma criação do interior de Minas que, ao invés de encorajar e fortalecer amizades entre mulheres, fazia ser comum crescer desconfiando delas.

    Isso é imensamente nocivo e, ao identificar esse aspecto, posso então saber onde está esse inimigo para recusar sua entrada na minha casa. E a inutilidade da competição a qual me refiro anteriormente é sobre o fato de que lidamos aqui com criação. Enquanto, de fato, nunca criamos nada em origem, mas sim fazemos releituras e elaborações do que já existe, cada olhar desses é muito particular, íntimo e único.

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    Ou seja, não há qualquer razão que justifique uma competição. Somos todas e cada uma de nós inteiras e, assim redondas e grandes, conseguimos nos fortalecer, fortalecendo todo um movimento de acesso, apoio e afeto entre nós. Quando essa questão fica mais clara, é quando entra a amizade e que eu tenho imensa sorte de ter com escritoras tão caras a mim, pessoas de inteligência afiada, sensibilidade evidente e bom humor cortante.

    Fabiane: O tema da loucura feminina ocupa um lugar de destaque nos seus textos de ficção, contos, e romances, e também de não ficção, como ensaios. Você poderia nos indicar outras obras que abordem essa temática, literariamente, sem recorrer a estereótipos?

    Nara Vidal: Penso frequentemente sobre essa questão da loucura e, quando penso nisso, volto sempre à questão do gênero e ao conceito de normalidade. Penso sobre a loucura ser a norma, mas aí entra outra questão que me interessa muito que é o esconderijo dessa loucura.

    A capacidade de construir uma fachada pra ser louca em paz, me parece algo bastante comum. Talvez todos nós, em alguma medida, sejamos assim. Quando essa fachada vira ruínas, ela é um problema, não tanto, talvez, para quem estava por trás dela, mas para quem pode ver a falta desse disfarce. As personagens consideradas loucas são também consideradas difíceis porque testam o outro que se vê como normal.

    Esse pudor e controle do normal passa a ser exposto e desafiado justamente pelo despudor e descontrole da personagem “louca”. Então, ela é ridicularizada, marginalizada, levada a alguma instituição ou morta. Morta de fato ou metaforicamente. Ou seja, o importante para o normal é não precisar conviver com o cru e imprevisível do comportamento, e quem causa esses constrangimentos deve ser eliminado de fato ou socialmente.

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    Minha personagem Eva, por exemplo, deve ter muito de mim. Ao mesmo tempo, morro de medo dela e, até certo ponto, eu dei forma a ela para que pudesse me desabitar. Como se na sua elaboração e criação, eu passasse o problema adiante, no caso, ao leitor.

    Acho também que essa ideia de loucura nas personagens femininas, que é um foco meu, passa por questões maritais, financeiras, de maternidade. Ou seja, na falta, no cultivo do papel de subordinada, uma mulher se angustia. Penso em Clarice Lispector que foi internada. Penso na residência literária que eu fiz por dois meses e que me pareceu uma pausa, um retiro, uma fuga da vida doméstica que pode ser, pra mim, um desafio imenso na sua repetição.

    Ofélia, em Hamlet, queria dizer que sabia o que os outros sabiam. Foi categorizada como coitadinha e louca e, por fim, morreu tentando expor verdades. Sylvia Plath que está sempre envolta nessa categoria de louca e suicida, algo que me parece profundamente injusto e violento porque ela viveu com muito determinação e vontade até não viver mais, expôs em cartas, diários suas verdades, inclusive a fragilidade mental e, curiosamente, a consciência disso.

    Acabei de ler o livro da Vanessa Bárbara (Três camadas de noite, editora Fósforo) onde ela traça um mapa da sua própria depressão e colore seu texto com recortes sobre Plath.

    A questão que você propõe é tão abrangente que é inesgotável. Acabei falando mais em personagens (autoras, inclusive) e não de obras. É um tema sedutor.

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    Fabiane: É difícil determinar como a escrita de um livro começa. Quando a primeira frase se forma e a leva para a escrita, quando, antes disso, algumas ideias e palavras passam a nos habitar, instigar, incomodar, convocar. Se tivesse que determinar, você conseguiria dizer qual foi a gênese de seus três romances publicados, Sorte, Eva e Puro?

    Nara Vidal: De fato, é difícil determinar esse começo sem um exercício objetivo de tentar me lembrar. Mas, nos romances, a escrita parte sempre de uma imagem, uma sensação ou uma narrativa muito minúscula que nasce e que eu preciso conhecer. Ao tentar conhecê-la, ela cresce, se desenrola, se desvenda e se amplia. É curioso que nos contos, geralmente, eu sei o final e, então, preciso da linguagem pra chegar a ele.

    No romance, o ponto de partida é um convite ao desconhecido. Não sei quase nada do que vai acontecer e o livro é escrito nesse enquanto.

    No Sorte e no Puro vejo alguma semelhança: ao me dispor a ouvir ou a olhar de fato para narrativas históricas, pontuadas num tempo passado, tenho essa sensação de injustiça que é muito inquietante. Venho entendendo que a questão da injustiça me incomoda há muito tempo. Quando uma pessoa é prejudicada ao extremo e sem oportunidade de defesa por causa de uma história, uma fofoca, isso é algo que, realmente, me incomoda. Desde criança posso me lembrar de episódios assim.

    Sorte e Puro começam disso, das narrativas oficializadas de alguns grupos (mulheres solteiras e grávidas, corpos escravizados, a ideia de uma supremacia racial) e repassadas a nós como verdades, impressas em livros escolares e aceitas como normais e curriculares. Já o Eva começa com a imagem da minha cama, na casa dos meus pais, sem lençol quando voltei à casa da família pela primeira vez depois da morte da minha mãe.

    A conclusão de que eu não tinha mais uma mãe se ergueu duramente quando entendi que eu não teria mais a garantia dos cuidados e carinhos como o de uma cama feita à minha espera depois de uma viagem longa e cansativa.

    Agora, por exemplo, estou envolvida com a escrita de um outro romance que começou com a imagem da cabeça e das patas de um cavalo e de facas. São começos que não fazem muito sentido, mas estranhamente se desenvolvem num processo que eu mesma tenho dificuldade de acompanhar de forma totalmente consciente.

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