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@fabianesecches Fabiane Secches escreve sobre cinema, literatura e psicanálise.
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O pouco que nos é permitido carregar

Um texto sobre vida, morte e amor

Por Fabiane Secches
Atualizado em 15 jul 2024, 17h33 - Publicado em 15 jul 2024, 17h15
luto
Tenho pensado em como lidamos com a morte na cultura ocidental, como nos parece intolerável acomodá-la em algum lugar iluminado onde seja possível vislumbrá-la, falar sobre ela (Sumaya Fagury/CLAUDIA)
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Li que um tubarão branco pode viver até 70 anos.
Já o bicho da seda vive apenas 15 dias.
Minha avó Alayde, mãe do meu pai, morreu no mesmo mês em que comemorou seu 87º aniversário.
Meu avô Walther, pai da minha mãe, poucos dias depois de fazer 93.
Em menos de duas semanas, perdi os dois, em sequência.

No Brasil, a expectativa de vida para seres humanos é de 75 anos. Meus avós ultrapassaram essa marca de longe, então seria correto dizer que tiveram uma vida longa. Ainda assim, soa tão breve.

Não me sinto em condições de escrever sobre eles ou sobre nós. Fracassei em todas as tentativas que fiz. Parece impossível suportar a ideia de que agora, segundo a gramática, devo me referir a eles conjugando os verbos no passado.

A linguagem me lembra de que essa é uma realidade tão estranha quanto incontestável: meus avós não estão mais aqui.

Nos últimos dias, participei de dois velórios, que ocorreram na mesma cidade, em salas contíguas. Vi meu pai perder a mãe; a minha mãe perder o pai. Caminhei pelas pequenas ruelas do mesmo cemitério.

Os túmulos onde estão um e outro ficam a poucos metros de distância. Observei as outras lápides com fotografias, placas e mensagens, os jazigos que cada família escolheu para si ou para as pessoas queridas.

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No enterro da minha avó Alayde, o céu estava muito azul, o tempo limpo. Poderia ter sido um bom dia. No enterro do meu avô Walther, o cemitério parecia muito triste e úmido, as nuvens escuras se avolumavam em cima da gente.

No cemitério, olhei para as árvores e plantas que crescem entre as sepulturas. Na penúltima vez, notei um caminho de formigas que levavam pétalas pequeninas e amarelas de um lado para o outro. Dizem que as formigas comuns vivem em média 8 semanas, mas muitas devem ter morrido pisoteadas naquela tarde.

Por esses dias, tenho me sentido mais próxima do mundo dos mortos do que dos vivos. Uma névoa me separa da rotina, da normalidade. Uma consciência aguda e cristalina da efemeridade das coisas, eu mesma incluída.

Tenho pensado em como lidamos com a morte na cultura ocidental, como nos parece intolerável acomodá-la em algum lugar iluminado onde seja possível vislumbrá-la, falar sobre ela. Certamente, esse texto soará sombrio para alguns. Provavelmente, para mim mesma, se voltar a lê-lo no futuro, quando essa cortina de fumaça se dissipar. Sei que esse é um estado intermediário, de travessia, e que a banalidade da vida irá se impor outra vez.

Tenho pensado em cada detalhe sobre meus avós, obsessivamente. Conversando com meus primos de um lado e de outro, seguimos compartilhando fotos antigas, tentando preencher lacunas na história desde os tempos mais remotos, quando sequer existíamos.

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Ontem pedi à minha avó Dalva, agora viúva, que me contasse como foi a primeira vez que viu meu avô, e a primeira vez que conversou com ele. Perguntei a ela sobre a estampa e a textura de uma camisa que ele usava, e sobre o cenário de uma memória de infância compartilhada. Teria sido assim mesmo? Não suporto perdê-lo também na confusão das lembranças.

Não consigo me interessar pelas pequenas polêmicas da internet, tudo de fora parece infinitamente distante. Não tenho vontade de clicar em mais um link sobre a eleição americana, sequer consigo lamentar pela morte do artista Leonard Cohen. Só consigo pensar em seus filhos e netos, que perderam o pai e o avô.

Estou concentrada em meus avós Alayde e Walther, e em meus pais, que perderem os seus pais. Estou ocupada de minha avó Dalva, que perdeu o marido amado, depois de 66 anos de casamento e com quem fui ontem ao cinema.

Ela usava as duas alianças, uma em cada dedo da mão esquerda. Estou interessada na minha irmã Camila e nos meus primos das duas famílias, netos como eu.

Estamos solitários em nossa dor, separados de um mundo que continua. Essa bolha logo se romperá, e voltaremos a ser como os outros. Mas, nesse breve espaço de tempo, não somos.

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Fazer com que esse momento se estique um pouco mais é estar com meu avô e com minha avó também um pouco mais.

Ontem enviei ao meu pai alguns versos de Fernando Pessoa, seu poeta favorito, que dizia assim:

A morte é a curva da estrada,
Morrer é só não ser visto.
Se escuto, eu te oiço a passada
Existir como eu existo.

Hoje de manhã, papai me respondeu com outro pequeno poema, que ele próprio escreveu em resposta. Temos tão pouco tempo aqui, tão pouco tempo com as pessoas que amamos. Daqui a cem anos, será que alguém ainda lerá as poesias de papai?

Tenho lido outros poemas sobre a morte. Em alguns momentos, sinto que apenas a poesia, a arte e a ficção (a literatura, o cinema) são as companhias possíveis.

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Por esses dias, visitei escritos de Goethe, Rilke, Bukowski, Drummond, Mário Quintana, Manuel Bandeira, Augusto dos Anjos, Walt Whitman. Mas foi em Emily Dickinson que encontrei o conforto que buscava e por quem me senti verdadeiramente compreendida. Então encerro esse texto com dois poemas dela, que peço licença de reproduzir no original.

1.

I died for beauty, but was scarce
Adjusted in the tomb,
When one who died for truth was lain
In an adjoining room.

He questioned softly why I failed?
“For beauty,” I replied.
“And I for truth – the two are one;
We brethren are,” he said.

And so, as kinsmen met a-night,
We talked between the rooms,
Until the moss had reached our lips,
And covered up our names.

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2.

Death leaves Us homesick, who behind,
Except that it is gone
Are ignorant of its Concern
As if it were not born.
Through all their former Places, we
Like Individuals go
Who something lost, the seeking for
Is all that’s left them, now—

Deixo também este link para um texto que fala de como a música pode nos ajudar a viver momentos de luto. No tuíte em que compartilhou o link, a autora Maria Popova conta que tem escutado Hallelujah, de Leonard Cohen, repetidamente. Estou escutando a mesma música enquanto escrevo essa carta.

Por fim, gostaria de contar que assino Fabiane Secches, mas meu nome é mais longo: Fabiane Vertemati do Amaral Secches. O Vertemati vem do meu avô Walther; o Amaral, da minha avó Alayde; o Secches, do meu avô Paulo.

Nenhum deles está mais aqui. Levar a memória de uma família em um nome é o pouco que nos é permitido carregar. Então hoje deixo aqui meu nome completo.

(A primeira versão deste texto foi escrita em 2016)

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