Desde criança, a mulher é condicionada a entender o que há na cartilha de restrições sobre o que vestir ou não. Seja minissaia ou lingerie, as regras relacionadas à vestimenta que, na maioria das vezes, estão atreladas à vulgaridade, permanecem reforçadas até a adolescência. E é aí que está a sorte desta garota de encontrar “más influências” para aprender que não é bem por aí — e que, apesar da moda carregar uma linguagem por meio das roupas, uma peça ainda é inofensiva e é preciso muito esforço para torná-la imprópria para uma mulher adulta. A “decência” está muito distante de ser associada a uma saia curta, por exemplo. Mary Quant, em meados de 1960, mostrou que minissaia é uma revolução — e o movimento efervescente Swinging London nasceu de uma geração pós-Guerra e foi base para uma série de outras formas de expressão por meio da moda que têm impacto até hoje.
Lembro de um frasco de perfume que ficava na penteadeira na casa da minha tia. Era o Classique, de Jean Paul Gaultier, lançado em 1993. O que me encantava na embalagem era o formato de busto com espartilho, roupa que, na mesma época, estava viralizando a partir de imagens da turnê Blonde Ambition da Madonna. Coincidentemente, o espartilho usado pela cantora também era feito pelo estilista francês — e vê-la usando a peça me deixou ainda mais curiosa.
Fato é: aos 8 anos, tentei descobrir mais sobre o que era um espartilho e, superficial- mente, entendi que era uma roupa de “moças de cabaret”. Eu continuava gostando, mas, a partir de todos os adjetivos que escutei sobre Madonna e o tal espartilho, entendi que “não era legal”. Na verdade, o que ninguém me falava era sobre o tal significa- do do espartilho na Idade Média. Isso porque a história da indumentária não era tão interessante ou massificada o suficiente para questionar o quanto este item, que festejava uma certa liberdade no corpo de Madonna, manteve as mulheres presas (e machucadas) por muito tempo.
A boa notícia é que a moda vem melhorando a forma de trabalhar a relação entre a mulher e as roupas. Mesmo que nem sempre a internet esteja pronta para compreender, há nomes que estão fazendo um ótimo dever de casa para apagar as linhas das fronteiras relacionadas a tipos corporais e, sim, deixar a mulher vestir o que ela achar apropriado.
Miuccia Prada é uma delas. Há tempos no comando da Prada (hoje, cocriada ao lado de Raf Simons) e Miu Miu, ela busca levantar questionamentos a partir de itens que, em algum momento, vão gerar certo incômodo. O mais recente (e polêmico) foi a minissaia de cintura baixa, apresentada no Verão 2022 da Miu Miu. À primeira vista, uma lembrança dos anos 2000 que não agradou tanto o público. Afinal, naquela época, a peça estava atrelada às divas do pop, com corpos magros e esculturais — talvez só elas conseguissem respirar com certa naturalidade. Isso desencadeou uma série de distúrbios alimentares em prol da “barriga lisa e sem flanco” nas jovens.
Porém, Miuccia é conhecida por não dar ponto sem nó. Apesar de tal memória, a diretora criativa dissecou a real necessidade do consumidor precisar se adequar à saia, o que implica, consequentemente, em questionar a necessidade de servir em outras peças. Em um curto espaço de tempo, diversas mulheres, com diferentes corpos e idades, estamparam capas de revistas internacionais (de i-D com a modelo plus size Paloma Elsesser, à Vanity Fair com Nicole Kidman aos 54 anos) usando a minissaia de cintura baixa mostrando que são novos tempos e o único fator determinante para vestir tal look é: vontade própria. Se você quer, você usa, certo?
No que diz respeito às lingeries e aos espartilhos, Maria Grazia Chiuri tem explorado inspirações e maneiras de representá-los nas suas coleções. Se os bodies acetinados podem trazer o espírito da Era do Jazz vivido por Josephine Baker na Alta Costura da Dior, as estruturas de corset acompanhadas de crinolinas sugerem uma interpretação ainda mais casual (mesmo que em tom de ironia).
Ainda falando sobre Jean Paul Gaultier, que exaltou a atmosfera vibrante parisiense na sua marca ao longo das últimas décadas, a ousadia feminina sempre foi vista como fonte de referências para suas criações. Mesmo aposentado e delegando a criação da sua marca a diferentes nomes a cada temporada, o conceito do atrevimento está ali, intacto. Se o bustiê pontudo usado por Madonna impactou nos anos 1990, Haider Ackermann, o designer escolhido da vez, trouxe tops com bustos em cone acompanhados de calças de alfaiataria elegantes (de tirar o fôlego).
Mesmo que as temporadas mais recentes tenham revelado uma boa dose estética em prol das mulheres terem a liberdade de escolher o que vestir, esse trabalho vem sendo feito há mais tempo. E, alguns desses nomes, distantes dos grandes conglomerados de luxo, seguiam suas crenças em manter a rebeldia feminina como forma de evolução na moda.
Vivienne Westwood. A estilista, que faleceu no final de 2022, foi voz relevante para levar as lingeries, transparências e uma ousadia para suas criações que fugia do “belo e comercial”. Segundo madame Westwood, o incômodo era uma maneira de levantar questões importantes para mulheres estarem livres — não só com decotes e fendas. Para ela, a sensualidade óbvia era vista como “a mulher vestindo para o homem”. Na construção dos seus looks, Vivienne mostrava que era preciso desbloquear camadas de preconceitos e restrições que foram determinados, seja na meia-calça ou na alça do sutiã à vista, por uma sociedade focada em manter a mulher limitada.
Mas o sistema fashion segue sendo alimentado por fontes inesgotáveis de grandes nomes revolucionários. Fora da moda também. Um exemplo? Em fevereiro, Rihanna fez um espetáculo, grávida do seu segundo filho, durante a final do Super Bowl. O visual monocromático vermelho, assinado por Jonathan Anderson para a Loewe, é composto por um catsuit de jérsei de seda, um macacão aviador e um busto de couro (o maior ponto de contraste). É espantoso pensar no quanto avançamos — e a internet tem um forte poder de apoiar transformações. Uma mulher grávida exposta em um palco, vestida de tal maneira, seria agressivo aos olhos conservadores da década de 1990. Quando vi Riri assim, pensei: “Espero que as meninas de oito anos não escutem o que eu ouvi, na mesma idade, sobre Madonna com seu espartilho”.