Em estado de montanha russa, entrei no cinema. Vinha de semanas (ou seriam anos) turbulentas. Pude abraçar amigas e amigos queridos. Era uma celebração depois de tanto trabalho, coragem e altivez, que não podem faltar aos artistas, em especial aos que “fazem cinema”. Pegamos pipoca, sentamos – bem acomodados numa sala de exibição em pleno coração da cidade de São Paulo. Cinema de rua que existe e, portanto, resiste há trinta anos. Antes das luzes se apagarem, uma breve apresentação dos produtores e das duas diretoras do filme sobre a razão de ser daquela obra.
Luta, resistência, genocídio, homenagem, direito, vida, morte, mulher, medo, lágrima, sobrevivência. Eu poderia discorrer por horas, apenas enumerando palavras que me ocorreram e atravessaram ao assistir ao documentário Quando Falta o Ar, de Ana Petta e Helena Petta – vencedor do Festival É Tudo Verdade, em 2022, e pré-selecionado ao Oscar. Seria redundância, entretanto, uma vez que poderia resumir todo o vocabulário em uma única palavra: apneia.
A falta de ar só teve alívio com as lágrimas que não pude nem quis conter. Observei ali o quanto ainda tenho a transbordar por meus lutos e pelos tantos momentos de vida e morte de pessoas amadas vividos nos cuidados que precedem a transição entre esses instantes. Ora em que entramos num túnel mal iluminado, feito de um silêncio abafado, que só amplifica os ruídos interiores e faz o apito dos equipamentos hospitalares ainda mais incômodo. Ora em que desejamos, instintivamente, o fim da travessia. E, ao mesmo tempo em que sabemos que, no momento em que esse percurso termina, a última esperança também se acaba e apaga-se a matéria. Decretado o fim do mergulho, fica para a eternidade toda a possibilidade do abraço.
Foram longos minutos de aplausos. A plateia de pé. O ar volta a invadir meus pulmões e arde. Faz expandir a caixa torácica com sofreguidão. Os olhos se ressentem da luz, as pupilas contraem. Leva um tempo para que possa perceber os contornos do mundo lá fora. As cores precisam se acomodar sem pressa, o corpo precisa de calma e alma para restabelecer o equilíbrio térmico até que seja capaz de sentir novamente o calor da vida, nomeado pelo amor como: “aquilo que sobrevive”.
Quando Falta o Ar não é um filme que fala, e mostra, exclusivamente a tragédia que a pandemia, associada a necropolítica, causou no Brasil. Não é simplesmente o registro histórico do descaso, do extermínio e do mais cruel abandono. Ele é um filme sobre a vida, sobre respirar, sobre não desistir, sobre ser forte na dor, sobre ser forte no amor, sobre tudo que há de humano e digno no ser.
Um filme de mulheres, sobre mulheres. Sobre quem cuida, apesar de tudo. Sobre quem oferece muito mais do que tem. Sobre quem faz do próprio corpo e da capacidade de se importar alicerces que sustentam um patrimônio público, responsável por nos salvar de uma catástrofe ainda maior: o Sistema Único de Saúde (SUS).
Ao entrar naquela sala de cinema atravessei um portal. Saí outra de lá. Mais humana, mais viva. Mais orgulhosa da arte feita por mulheres, que falam do que é cruel, olhando nos olhos, de braços estendidos e punhos cerrados num convite ao acolhimento e à luta!
Quem quiser saber mais sobre o documentário e a história por trás desse trabalho, pode ouvir minha conversa com as diretoras de Quando Falta o Ar, Ana Petta e Helena Peta, no meu podcast “Palavra (s.f.)” – disponível no Spotify. Respire fundo, e dê o play.