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100 anos de João Cabral: 5 poemas do autor de “Morte e Vida Severina”

O poeta e diplomata pernambucano dedicou a vida à escrita, transformando-se em um dos pilares da poesia moderna brasileira.

Por Colaboração: Gabriela Maraccini
Atualizado em 17 fev 2020, 10h26 - Publicado em 9 jan 2020, 13h39
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  • João Cabral de Melo Neto completaria 100 anos nesta quinta-feira (9). Modernista e autor dos clássicos “Morte e Vida Severina” (1955) e “O Cão Sem Plumas” (1950), o poeta morreu em 1999 vítima de um ataque cardíaco, deixando um legado importante para a poesia brasileira.

    Nasceu em Pernambuco da união de Luís Antônio Cabral de Melo e Carmen Carneiro Leão Cabral de Melo, no dia 6 de janeiro de 1920, segundo sua certidão de nascimento. No entanto, durante toda a vida, João insistiu que teria nascido três dias depois.

    O dom para a literatura já estava presente no sangue. Ele era primo de Manuel Bandeira e Gilberto Freyre. Em 1942, quando tinha 22 anos, mudou-se com a família para o Rio de Janeiro e lá iniciou sua carreira literária, publicando o primeiro livro “Pedra do Sono”. A partir daí, ele escreveu diversas outras obras. Segundo ele, “escrever é estar no extremo de si mesmo”.

    Cabral de Melo Neto dividia o ofício com a diplomacia, tendo trabalhado durante anos no Ministério das Relações Exteriores e passado por vários países. A estabilidade do emprego como funcionário público permitiu com que ele continuasse exercendo o que mais gostava: contar histórias por meio da palavra escrita.

    Como ele mesmo afirmava, a escrita era ausente de sentimentalidade e emoções exacerbadas. Isso não quer dizer que a obra dele não era sensível e que não foi de suma importância para a formação da poesia moderna brasileira, abordando questões sociais (e fazendo críticas), vida, morte, e o amor.

    João Cabral de Melo Neto
    João Cabral de Melo Neto na posse na Academia Brasileira de Letras (Arquivo Nacional/Reprodução)

    Em 1968, foi eleito como membro da Academia Brasileira de Letras (ABL), recebido por José Américo. “Venho ser companheiro de escritores que representaram, ou representam, o que a pesquisa formal, no nível da textura e da estrutura do estilo, tem de mais experimental; escritores outros cuja obra é uma permanente, e renovada, denúncia de condições sociais que espíritos acomodados achariam mais conveniente não dar a ver (…) E tudo isso sem que a Academia tenha procurado exercer nenhuma censura e sem que a posição de acadêmicos tenha levado esses escritores a qualquer autocensura”, declarou ele em seu discurso de posse.

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    Como forma de homenageá-lo, a equipe de CLAUDIA selecionou 5 poemas essenciais de João Cabral de Melo Neto para celebrar seu centenário. Confira:

    Morte e Vida Severina

     — O meu nome é Severino,
    como não tenho outro de pia.
    Como há muitos Severinos,
    que é santo de romaria,
    deram então de me chamar
    Severino de Maria;
    como há muitos Severinos
    com mães chamadas Maria,
    fiquei sendo o da Maria
    do finado Zacarias.
    Mas isso ainda diz pouco:
    há muitos na freguesia,
    por causa de um coronel
    que se chamou Zacarias
    e que foi o mais antigo
    senhor desta sesmaria.
    Como então dizer quem fala
    ora a Vossas Senhorias?
    Vejamos: é o Severino
    da Maria do Zacarias,
    lá da serra da Costela,
    limites da Paraíba.
    Mas isso ainda diz pouco:
    se ao menos mais cinco havia
    com nome de Severino
    filhos de tantas Marias
    mulheres de outros tantos,
    já finados, Zacarias,
    vivendo na mesma serra
    magra e ossuda em que eu vivia.
    Somos muitos Severinos
    iguais em tudo na vida:
    na mesma cabeça grande
    que a custo é que se equilibra,
    no mesmo ventre crescido
    sobre as mesmas pernas finas,
    e iguais também porque o sangue
    que usamos tem pouca tinta.
    E se somos Severinos
    iguais em tudo na vida,
    morremos de morte igual,
    mesma morte severina:
    que é a morte de que se morre
    de velhice antes dos trinta,
    de emboscada antes dos vinte,
    de fome um pouco por dia
    (de fraqueza e de doença
    é que a morte Severina
    ataca em qualquer idade,
    e até gente não nascida).
    Somos muitos Severinos
    iguais em tudo e na sina:
    a de abrandar estas pedras
    suando-se muito em cima,
    a de tentar despertar
    terra sempre mais extinta,
    a de querer arrancar
    algum roçado da cinza.


    O Cão Sem Plumas

    A cidade é passada pelo rio
    como uma rua
    é passada por um cachorro;
    uma fruta
    por uma espada.

    O rio ora lembrava
    a língua mansa de um cão
    ora o ventre triste de um cão,
    ora o outro rio
    de aquoso pano sujo
    dos olhos de um cão.

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    Aquele rio
    era como um cão sem plumas.
    Nada sabia da chuva azul,
    da fonte cor-de-rosa,
    da água do copo de água,
    da água de cântaro,
    dos peixes de água,
    da brisa na água.

    Sabia dos caranguejos
    de lodo e ferrugem.

    Sabia da lama
    como de uma mucosa.
    Devia saber dos povos.
    Sabia seguramente
    da mulher febril que habita as ostras.

    Aquele rio
    jamais se abre aos peixes,
    ao brilho,
    à inquietação de faca
    que há nos peixes.
    Jamais se abre em peixes.


    Tecendo a Manhã

    Um galo sozinho não tece uma manhã:
    ele precisará sempre de outros galos.
    De um que apanhe esse grito que ele
    e o lance a outro; de um outro galo
    que apanhe o grito de um galo antes
    e o lance a outro; e de outros galos
    que com muitos outros galos se cruzem
    os fios de sol de seus gritos de galo,
    para que a manhã, desde uma teia tênue,
    se vá tecendo, entre todos os galos.

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    E se encorpando em tela, entre todos,
    se erguendo tenda, onde entrem todos,
    se entretendendo para todos, no toldo
    (a manhã) que plana livre de armação.
    A manhã, toldo de um tecido tão aéreo
    que, tecido, se eleva por si: luz balão.


    A Educação pela Pedra

    Uma educação pela pedra: por lições;
    Para aprender da pedra, frequentá-la;
    Captar sua voz inenfática, impessoal
    (pela de dicção ela começa as aulas).
    A lição de moral, sua resistência fria
    Ao que flui e a fluir, a ser maleada;
    A de poética, sua carnadura concreta;
    A de economia, seu adensar-se compacta:
    Lições da pedra (de fora para dentro,
    Cartilha muda), para quem soletrá-la.

    Outra educação pela pedra: no Sertão
    (de dentro para fora, e pré-didática).
    No Sertão a pedra não sabe lecionar,
    E se lecionasse, não ensinaria nada;
    Lá não se aprende a pedra: lá a pedra,
    Uma pedra de nascença, entranha a alma.


    O Fim do Mundo

    No fim de um mundo melancólico
    os homens lêem jornais
    Homens indiferentes a comer laranjas
    que ardem como o sol

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    Me deram uma maçã para lembrar
    a morte. Sei que cidades telegrafam
    pedindo querosene. O véu que olhei voar
    caiu no deserto.

    O poema final ninguém escreverá
    desse mundo particular de doze horas.
    Em vez de juízo final a mim me preocupa
    o sonho final.


    Os Três Mal-Amados

    O amor comeu meu nome, minha identidade,
    meu retrato. O amor comeu minha certidão de idade,
    minha genealogia, meu endereço. O amor
    comeu meus cartões de visita. O amor veio e comeu todos
    os papéis onde eu escrevera meu nome.

    O amor comeu minhas roupas, meus lenços, minhas
    camisas. O amor comeu metros e metros de
    gravatas. O amor comeu a medida de meus ternos, o
    número de meus sapatos, o tamanho de meus
    chapéus. O amor comeu minha altura, meu peso, a
    cor de meus olhos e de meus cabelos.

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    O amor comeu meus remédios, minhas receitas
    médicas, minhas dietas. Comeu minhas aspirinas,

    minhas ondas-curtas, meus raios-X. Comeu meus
    testes mentais, meus exames de urina.

    O amor comeu na estante todos os meus livros de
    poesia. Comeu em meus livros de prosa as citações
    em verso. Comeu no dicionário as palavras que
    poderiam se juntar em versos.

    Faminto, o amor devorou os utensílios de meu uso:
    pente, navalha, escovas, tesouras de unhas,
    canivete. Faminto ainda, o amor devorou o uso de
    meus utensílios: meus banhos frios, a ópera cantada
    no banheiro, o aquecedor de água de fogo morto
    mas que parecia uma usina.

    O amor comeu as frutas postas sobre a mesa. Bebeu
    a água dos copos e das quartinhas. Comeu o pão de
    propósito escondido. Bebeu as lágrimas dos olhos
    que, ninguém o sabia, estavam cheios de água.

    O amor voltou para comer os papéis onde
    irrefletidamente eu tornara a escrever meu nome.

    O amor roeu minha infância, de dedos sujos de tinta,
    cabelo caindo nos olhos, botinas nunca engraxadas.
    O amor roeu o menino esquivo, sempre nos cantos,
    e que riscava os livros, mordia o lápis, andava na rua
    chutando pedras. Roeu as conversas, junto à bomba
    de gasolina do largo, com os primos que tudo sabiam
    sobre passarinhos, sobre uma mulher, sobre marcas
    de automóvel.

    O amor comeu meu Estado e minha cidade. Drenou a
    água morta dos mangues, aboliu a maré. Comeu os
    mangues crespos e de folhas duras, comeu o verde
    ácido das plantas de cana cobrindo os morros
    regulares, cortados pelas barreiras vermelhas, pelo
    trenzinho preto, pelas chaminés. Comeu o cheiro de
    cana cortada e o cheiro de maresia. Comeu até essas
    coisas de que eu desesperava por não saber falar
    delas em verso.

    O amor comeu até os dias ainda não anunciados nas
    folhinhas. Comeu os minutos de adiantamento de
    meu relógio, os anos que as linhas de minha mão
    asseguravam. Comeu o futuro grande atleta, o futuro
    grande poeta. Comeu as futuras viagens em volta da
    terra, as futuras estantes em volta da sala.

    O amor comeu minha paz e minha guerra. Meu dia e
    minha noite. Meu inverno e meu verão. Comeu meu
    silêncio, minha dor de cabeça, meu medo da morte. 


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