Nem todo mundo quer falar sobre consentimento, desejo, assédio e obsessão. Na verdade, nem todo mundo quer encarar as ambiguidades próprias e alheias, reduzindo-as a recortes específicos, analisadas com um total de zero profundidade. Mas não Mary Gaitskill. A autora americana ficou conhecida pelo seu livro de estreia, Mau Comportamento (1988), que se tornou, quase imediatamente, um cult da literatura norte-americana. Mais de 30 anos depois, os contos obscuros sobre a vida noturna de Nova York voltam às prateleiras, agora em português, publicados pela Fósforo – que lança também Isso é Prazer + As Dificuldades de Seguir as Regras. Nascida em 1954 em Lexington, no Kentucky, Mary começou a escrever aos 6 anos. Foi no final da adolescência, porém, que, com ajuda de professores, ela decidiu seguir carreira na literatura. Dona de uma voz autoral e capaz de tatear assuntos tidos como polêmicos, a escritora nos presenteia com narrativas verdadeiramente humanas – nada mais complexo que isso, como você vê na entrevista a seguir.
Existe um movimento de fomentar a leitura de autoras mulheres hoje. Você sentiu alguma mudança no mercado editorial?
Imagino que no Brasil seja diferente, mas nos Estados Unidos o foco das editoras, agora, é publicar autores negros e latinos – principalmente mulheres negras. É mais sobre uma diversidade racial que de gênero. Eu gosto de vários autores brancos, homens, cis, mas eles esgotaram o que tinham a dizer. Afinal, estão sendo publicados há anos. A energia criativa dos escritores negros e latinos tinha sido pouco explorada. Essa necessidade de expressão tem muito a nos oferecer em termos de conteúdo.
E você acha que isso influencia em como as personagens são retratadas?
Na literatura, não tenho visto uma coisa que acontece bastante na TV e no cinema: a vontade extrema de transformar as personagens femininas em fortes e vitoriosas, o tempo todo. Particularmente, não gosto disso. Parece que a agenda se sobrepõe ao conteúdo, e aí as histórias ficam falhas.
Como você lidou com o sucesso estrondoso de Mau Comportamento na época do lançamento?
Foi muito difícil, não estava esperando nada parecido. E não é que foi um best-seller nacional ou algo do tipo, mas ele chamou muita atenção de um ciclo específico de pessoas, principalmente em Nova York. Achavam que eu fosse sofisticada, capaz de ler a mente das pessoas. Em eventos sociais, sentia essa pressão por uma imagem que não era a minha. Isso me deixou tímida, me mudei para a Califórnia para ficar comigo mesma. Era cansativo demais essa atenção e as expectativas que as pessoas criaram sobre mim.
O livro está sendo publicado em português agora. Como você enxerga o conteúdo dele hoje, 30 anos depois?
Fico surpresa (e feliz) que ele tenha uma vida longa de prateleira. São histórias que escrevi quando nova, sabia pouco sobre a vida naquela época. Eu era ingênua – e talvez seja essa a grande qualidade do livro. Pessoas ingênuas não fazem suposições sobre nada, elas simplesmente prestam atenção e observam os outros com mais cuidado. O que desgosto dos livros contemporâneos é justamente essa vontade dos autores de quererem se mostrar sábios demais. Quando fiz Mau Comportamento, não entendia o que estava vivenciando. Acho engraçado ele ser visto como algo de tanta sabedoria e maturidade (risos).
Em Isso é Prazer você aborda #MeToo e cancelamento. Por que você decidiu escrever a história do ponto de vista do assediador e da colega dele?
Para mim, era natural ser desse jeito. Se fosse só sobre Quinn, seria chato, porque ele não é um personagem que se questiona do que faz ou deixa de fazer, e o impacto disso na vida das outras pessoas. Margot, por outro lado, é necessária por somar à narrativa essa confusão. É amiga pessoal e colega de trabalho, gosta dele, mas sabe que ele faz coisas que deixam outras mulheres desconfortáveis… Sente raiva dele, e se pergunta por que. Ele, por sua vez, é um personagem intrigante porque não é grotesco e, sim, sutil na sua forma de abordar as pessoas. Ao passo que algumas das mulheres brincam e flertam de volta, tornando a situação ambígua. Elas, em algum ponto, dão o consentimento, mas ficam surpresas dele realmente fazer algo. Ele recebe esse consentimento e faz, porque entende como uma permissão. Porém, para mim, ele não pode ficar surpreso com as possíveis consequências desses atos.
Falando sobre consentimento, essa é uma pauta em alta hoje. Como você vê isso na sociedade?
Estou velha, me sinto desconectada dos dates de hoje (risos). Minha realidade é acadêmica, não sei o quanto isso mudou ou não fora da minha bolha. Mas, no passado, existia esse mito de que dizer “não” significava “sim”, num modo de se fazer de difícil. Éramos criadas para sermos “doces”, “boas meninas”, “seguir as regras”. Tinham algumas que se sentiam seduzidas dessa forma, era comum dentro das normas da sociedade naquela época. A narrativa mudou no final dos anos 60, quando a mulher passou a ter o direito de desejar também. No meu caso, aprendi que, ao não querer algo, precisaria verbalizar com todas as letras. Justamente por causa dessa imposição social de “ser agradável” o tempo inteiro. Somado a isso, fui estuprada aos 16. Era algo inconsciente de achar que, ao dizer não, o cara iria me estuprar, necessariamente.
A vontade extrema de transformar as personagens femininas em fortes e vitoriosas o tempo inteiro se sobrepõe ao conteúdo, e aí as histórias ficam falhas
Esse momento aparece no ensaio A Dificuldade de Seguir as Regras, né?
Lembro vividamente o dia que disse não. Já era mais velha, tinha saído com um cara legal, mas não queria transar. Ele insistiu algumas vezes e eu estava fisicamente o afastando de mim. Comecei um diálogo dentro da minha cabeça: “Apenas diga, vai ficar tudo bem”. Verbalizei, ainda assim ele tentou mais uma vez, até eu repetir com mais firmeza. Isso é algo muito difícil para as mulheres fazerem, acredito que por sermos sempre educadas a agradar, sermos fofas e meigas. Quando falamos não, somos escrotas. Os homens precisam saber lidar e controlar as suas vontades, e as mulheres precisam de alguma forma aprender a falar o que querem ou não. Ambos precisam ser responsáveis [nessa troca afetiva ou sexual]. Honestamente, não entendo porque essa ideia é vista, por vezes, como controversa ou radical.