MASP celebra arte yanomami em nova exposição
Mostra "Joseca Yanomami: Nossa Terra-Floresta" reúne 93 obras do artista e convida o público para uma reflexão sobre proteção da cultura ancestral
Até 30 de outubro, o MASP exibe a mostra Joseca Yanomami: Nossa Terra-Floresta, com 93 obras do artista indígena. A exposição marca também a celebração dos 30 anos da homologação da Terra Indígena Yanomami. Os desenhos com traços delicados e coloridos enaltecem os espíritos que moram na natureza e seus saberes ancestrais. Cenas cotidianas se misturam a paisagens e histórias xamânicas para convidar o público visitante a refletir sobre como se tornar um aliado da luta em prol da preservação da cultura originária — em seu amplo significado.
“A humanidade precisa olhar para os povos indígenas, porque proteger a natureza significa proteger os espíritos que ali habitam. É um chamado para o compromisso”, diz David Ribeiro, assistente curatorial. A exposição é um prelúdio para o ciclo de Histórias Indígenas que toma conta do museu em São Paulo durante o próximo ano. A palavra napë, presente no texto de Denilson Baniwa no catálogo da exposição e em alguns títulos das obras, significa “forasteiro”, “estrangeiro” e/ou “população não indígena” — essa última, em especial, para designar brancos. “Ele elabora o sentido da arte indígena como um processo de conseguir pessoas para a luta. Nas obras de Joseca, por exemplo, vemos muitos elementos não indígenas, tais quais panelas de alumínio, bermudas e aviões, inseridos dentro da cosmologia yanomami”, comenta David.
Falar sobre a exposição, como lembra o assistente curatorial, é lembrar da história do próprio artista. Joseca teve uma trajetória marcada pelo luto da perda precoce de sua mãe, depois o falecimento do seu pai, sem contar as inúmeras consequências do avanço do garimpo e da invasão de terras indígenas. “Ao ter contato com a escrita e os desenhos fora do universo da aldeia, Joseca usa isso para se comunicar com o mundo não indígena e fazer chegar ‘lá fora’ todas as coisas que os yanomamis querem criar e desenvolver.” A seguir, mais detalhes da nossa conversa com David Ribeiro.
Qual a relevância para o MASP de exibir uma mostra como essa depois de uma sequência de notícias sobre a devastação das terras indígenas e o massacre dos povos originários?
Eu enxergo como algo essencial. Em 2022, estamos celebrando os 30 anos da homologação da terra indígena yanomami, mas vemos ações degradantes sem precedentes. E não é que não existia antes. Mas, hoje, além de ter mais gente, mais garimpo, o maquinário é muito mais devastador. Isso sem contar os desejos do Congresso e do Executivo em abrir indiscriminadamente esses territórios para atividades comerciais. É necessário esse momento para o povo da cidade se sensibilizar, ter contato, conhecer, saber tudo que o passam e o que fazem. Queríamos dar esse tom sensível para fomentar a esperança. Afinal, o futuro é indígena. Só que para termos um, a humanidade precisa olhar para os povos indígenas, proteger a natureza significa ter os espíritos sempre presentes. A floresta feia, sem árvores, não atrai os espíritos de volta. Essa chamada de compromisso para o MASP não é temporária Todas as obras da exposição foram doadas ao museu e passam a compor o acervo.
Como se tornar um aliado dessa história?
Por meio do reconhecimento, da reflexão diante das pautas, do cuidado, do respeito, da promoção dessas narrativas em outros ambientes. Da valorização da proteção do meio ambiente e da conservação ambiental. Precisamos, antes de tudo, ouvi-los.
O brasileiro passou muito tempo importando (e dando importância) para as criações da Europa e dos Estados Unidos. Mas, nos últimos anos, grandes exposições no Brasil têm dado cada vez mais espaço para artistas indígenas – e dar voz ao resgate de nossas raízes faz parte de uma reapropriação da nossa própria cultura. O quanto ocupar esses lugares, que, sabemos, são espaços onde pessoas privilegiadas frequentam, é também ocupar os lugares de direito desses artistas?
É um processo que tem acontecido em várias frentes, tanto nas artes quanto na universidade. E isso é fruto de muitas conquistas pós Constituição de 88, porque, até então, as populações indígenas eram tuteladas, tinham pouquíssimos direitos e não podiam se expressar sem autorização da FUNAI – que, apesar de ser a Fundação Nacional do Índio, vem atuando contra os povos indígenas durante muito tempo. O processo que levou a Constituição de 88, que visibilizou esses povos e a diversidade que os compõem, fez com que ao longo dos 30 poucos anos pós-88, fossem reconquistando cada vez mais espaços. Tem uma amiga que brinca que esse movimento é uma reintegração de posse — porque é. Esses povos sempre habitaram territórios, mas foram relegados a pequenas porções dele. A retomada de espaços, territórios, coloca eles no controle da narrativa. E isso tem feito a sociedade ouvir, entender, respeitar e incorporar, ponto mais difícil de acontecer, pontos de vista indígenas sobre o mundo, relações pessoas, com natureza, incorporar aquilo que a gente ouve, aprender aquilo que a gente tenha uma vida comum mais satisfatória para todo mundo.
Fico feliz de ver esse movimento acontecendo, mas me preocupa o tipo de presença, para não cair no lugar do exótico, da exotização dessa produção. Se isso acontece, se fica só no âmbito da estética, tira todo o conteúdo espiritual e histórico. Quando, na verdade, a gente precisa conseguir enxergar esse chamado à mudança de pensamento: é uma descolonização, um encontro Brasil consigo mesmo, com aquilo que o forma. Temos que repensar os nossos próprios valores e as dinâmicas [de relação] para reconstruir o país em conjunto com essas populações. Os povos minoritários precisam ter uma voz ativa, mesmo que constituam uma minoria em termos demográficos. As projeções precisam de alcance nas instituições, nas políticas públicas, para, então, causar transformações reais na população não indígena. Eles não lutam por eles, lutam por todos e para que o mundo continue existindo.
Tudo isso também precisa passar pela educação, artística, social, histórica, política e financeira, certo? O museu terá programações paralelas voltadas ao conhecimento?
Sim! Eu também trabalho diretamente com a programação do MASP Escola, mas na parte de docentes. Era um trabalho que já vinha sendo feito antes de eu entrar aqui, mas dou continuidade porque queremos aprofundar as temáticas ao longo do semestre das exposições. Vamos organizar palestras no sentido de levantar questões com o público, indígenas e não indígenas, para provocar outros pontos, criar o interesse desses professores em, por exemplo, levar seus alunos ao museu. E não só trabalhar as temáticas com eles em sala de aula, mas na universidade também. [A educação indígena] tem outra dinâmica de ensino e de trabalho. Aqui, buscamos um caminho de “como a presença indígena pode estar nos museus e o que esperar dessa colaboração”. Não queremos professores, artistas e especialistas indígenas falando só das pautas necessariamente indígenas. Queremos eles presentes nas questões LGBTQIA+, nas artes visuais, na ecologia; queremos ouvir sobre o que pensam a respeito de qualquer assunto.
Nos últimos anos, vimos uma disseminação da pauta feminista, depois da pauta antirracista e, agora, parece que finalmente estamos abertos para discutir a pauta indígena. Porém, a interseccionalidade precisa ser levada em conta. Você concorda?
As coisas são todas interligadas, e precisam ser pensadas de forma integral. [O nosso pensamento] é uma herança iluminista, de compartimentar as temáticas, e nós internalizamos isso no currículo educacional, na produção de conhecimento. Quando a gente dialoga com populações fora da universidade, com os povos indígenas, os povos quilombolas, fica claro o quanto os conhecimentos presentes dentro da universidade é lento, complicado e com muitas tensões. Ao longo do tempo, as pessoas entendem como as coisas estão interligadas e como precisamos pensá-las assim.
O conhecimento transdisciplinar nos faz perceber que o mundo não pode ser visto apenas a partir de um ponto de vista, porque você perde todos os outros. Gosto de trabalhar com o museu por isso: olhares múltiplos para um mesmo objeto; uma preocupação em capturar as coisas de vários pontos de vista. Por mais que eu seja historiador de formação, não fico restrito ao ponto de vista histórico de cada questão. Nos falta pensar integralmente.