A imagem do atentado ao Hotel Canal, em 2003, em Bagdá, foi uma das mais chocantes imagens da Guerra no Iraque. Não apenas custou a vida de 22 pessoas como também foi um dos raros – e tristes – momentos em que funcionários da ONU, que negociavam a paz, foram alvo de terroristas. Naquela tarde de agosto, depois de cerca de 3 horas aguardando socorro, o representante especial das Nações Unidas no país, o brasileiro Sergio Vieira de Mello, foi uma das vítimas fatais. Ele ficou preso nos destroços e quem acompanhou a cobertura do conflito, praticamente acompanhou sua agoniante morte pela televisão. A organização extremista Al Qaeda assumiu a responsabilidade pelo ocorrido e afirmou que Mello era o alvo principal do ataque.
Sérgio Vieira de Mello era um funcionário de carreira com mais de 30 anos de experiência na ONU e, na época, era visto como o possível sucessor de Kofi Annan na Secretaria Geral das Nações Unidas. Foi Annan que enviou Mello como representante da ONU em Kosovo, mais tarde foi no Timor-Leste, onde ficou 4 anos no cargo de administrador de transição, que ele se destacou. Sua incrível história ganhou relevância ainda maior com sua trágica morte e o filme da Netflix, Sergio, estrelado por Wagner Moura e Ana de Armas, reconta parte dela.
O filme é uma adaptação da biografia sobre o brasileiro escrita em 2008, pela americana Samantha Power, e dirigido pelo estreante em cinema, o jornalista Greg Barker. Barker, que se destacou por documentários premiados, já tinha feito um documentário sobre Sergio Vieira de Mello para a HBO, em 2009, e sentiu que a história do diplomata tinha material para um longa.
“O documentário é sobre como as pessoas viam Sergio como indivíduo e reagiram sobre seus esforços de salvar o mundo. Era possível perceber seu carisma e contradições refletidas nas pessoas que o conheceram”, diz Barker que seguiu ainda curioso para conhecer e relevar mais sobre ele.
Um dos aspectos acertados do roteiro é não romantizar a persona de Mello apenas como um herói e, ao contrário, ressaltar a complexidade da vida pessoal dele em comparação à carreira ascendente na ONU. Na época de sua morte, ele já vivia com sua companheira, Carolina Larriera, que ele conheceu (e se apaixonou) quando trabalhavam no Timor-Leste. Larriera estava com ele no dia do atentado, mas conseguiu escapar com vida. O relacionamento dos dois é o fio condutor do longa.
Depois de fazer sucesso internacional como Pablo Escobar na série Narcos, Moura buscava uma personagem oposta ao traficante e aceitou o desafio de mais uma vez interpretar em outro idioma, dessa vez, inglês. Ele conversou com CLAUDIA sobre o papel, o filme e seu processo criativo.
CLAUDIA: De todas as missões que Sergio Vieira de Mello liderou, ele uma vez disse que se sentiu mais mexido pela triste história das crianças mutiladas em Serra Leoa. Para você, qual a história dele que mais te impactou?
MOURA: Eu não tenho como não falar que foi a morte dele, porque já era trágica a situação da ONU no Iraque em 2003. A ONU foi completamente contrária à invasão, o Sergio pessoalmente era contrário. Ele negou o convite várias vezes e acabou sendo convencido pelo [George W.] Bush [então Presidente dos Estados Unidos] e Condoleezza Rice [então Secretária de Estado] que ele era a pessoa para ir, e foi com a condição de que seria rápido e tudo o mais, ou seja, há vários aspectos trágicos de tudo isso. Ele era o Alto Comissário das Nações Unidas para os Direitos Humanos em um lugar em que a coalizão estava desrespeitando os direitos humanos de uma forma brutal, e estava começando uma história nova na vida dele com a Carolina [Larriera], estava organizando a vida dele emocional, que sempre foi muito bagunçada, e evidentemente, o atentado que o matou e que o deixou dentro daqueles escombros por 3 horas, quando poderia ter sido resgatado em qualquer lugar do mundo. Para mim é essa a parte que é muito trágica, que é muito violenta. Mas de fato ele foi um homem que presenciou situações humanas muito difíceis.
CLAUDIA: E ‘Sergio’ foi mais um papel biográfico. Você prefere?
MOURA: Não, ao contrário! Eu prefiro não ter a responsabilidade de fazer algo baseado na vida de alguém. Não sei porquê foram acumulando projetos na minha vida que são baseados em personagens reais, mas prefiro contrário.
CLAUDIA: E quando voltaremos a te ver em filmes ‘mais leves’ ou comédias?
MOURA: (rindo) Você sabe que é tudo misturado? Assim, eu gosto de fazer humor mas me lembro quando tive muito essa clareza quando fiz ‘Hamlet’, que é para mim um dos personagens mais engraçados da dramaturgia mundial. Eu tenho discutido muito com meu filho o que é a natureza do humor, sobre o que é engraçado ou o que não é engraçado. Por exemplo, vi há pouco o filme “A História de um Casamento” e é um filme dramático, claro, mas é um filme muito engraçado também, então as coisas são misturadas.
CLAUDIA: E mais um projeto falado em outro idioma: foi mais difícil ou mais fácil que gravar em espanhol?
MOURA: Eu acho muito difícil atuar em inglês, espanhol, muito difícil. Qualquer língua que não seja português. Quando eu fiz o filme do Olivier Assayas falei em russo, em Sergio falo francês, que são línguas que não domino. É muito difícil qualquer uma que não seja português. [pausa]. Mas eu faço [risos]
CLAUDIA: E você conheceu pessoalmente a família de Sergio Vieira de Mello antes de fazer o filme?
MOURA: Sim. Como ator, prefiro criar a personagem sem nenhuma intervenção e sem que ninguém espere alguma coisa do que vou fazer, sem criar expectativa em familiares e tudo o mais, então o meu trabalho foi muito em cima do que já existia sobre o Sérgio, o livro da Samantha Power, o documentário do Greg [Barker, diretor], tem muita coisa sobre o Sergio na internet, tem teses acadêmicas, muita reportagem sobre ele. Tem muita informação sobre o Sergio, mas, como produtor do filme me senti sob a responsabilidade de ética de – antes de começar o projeto – entrar em contato com os filhos do Sergio em Bruxelas e com a Carolina. Eles estão em lados opostos na narrativa sobre a vida do Sergio, mas eu entrei em contato com os dois lados.
CLAUDIA: Você prefere não ter o contato?
MOURA: É o jeito como abordo o meu trabalho, é um trabalho muito solitário, eu não sei… eu prefiro estar criando sozinho
Sergio está disponível na Netflix a partir de 17 de abril. Veja o trailer do filme: