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A relação entre mães e filhas no novo romance de Maria Esther Maciel

"Essa Coisa Viva" discorre sobre esta construção, libertando ambas de papéis pré-determinados

Por Maria Carolina Casati
11 mar 2024, 11h04
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  • A literatura, o cinema e a música há muito nos têm presenteado (na falta de verbo melhor) com narrativas sobre mães tóxicas e suas filhas injustiçadas. O enredo dessas relações — entre as mais complexas que a humanidade tem a oferecer — costumam girar em torno dos mesmos temas de competição, vaidade e frustrações. Nesse sentido, o recém-lançado Essa Coisa Viva, livro de Maria Esther Maciel, renuncia aos clichês ao oferecer uma protagonista imperfeita (a filha, no caso) às voltas com tudo que o aniversário da morte de sua mãe lhe provoca. 

    Ana Luísa (que deveria ter sido LuiZa pelo desejo da mãe, mas foi LuíSa pelo lapso do pai), tal qual Sherazade, emenda uma história-lembrança na outra para reconstruir a mãe que se foi no meio da pandemia de Covid-19.

    Ela se vale de inúmeras referências bibliográficas (do filósofo romeno Emil Cioran, passando pelo escritor argentino Jorge Luis Borges até chegar ao botânico italiano Stefano Mancuso) para dar sentido a tudo o que viveu ao lado de uma mãe violenta, opressiva e emocionalmente instável.  

    Diferentemente da narradora de As Mil e Uma Noites, que tentava a todo custo se manter interessante para continuar viva, a morte da mãe já está dada desde o início. Essa ausência tão presente da mãe é o que dá corpo ao texto e à própria narradora, bem como apresenta um dos grandes paradoxos do livro: Essa Coisa Viva tem como personagem principal, presente nas 124 páginas da obra, uma mulher morta.

    Ana Luísa não consegue chorar pela mãe, por mais que ache que deva fazê-lo. Nas suas palavras, “apenas me encerrei numa indistinta e vaga tristeza, como se tomada por uma dor antiga, dessas que trazemos no corpo por muitos anos, sem sabermos exatamente de onde vêm”. Esse é o primeiro parágrafo do livro. Observamos, a partir daí, que a narradora tem mesmo muitos anos de dor para processar.

    A narradora de Essa Coisa Viva tem experiências que são, na mesma medida, traumáticas e elucidativas. Em uma passagem que faz referência a A Paixão Segundo G.H, de Clarice Lispector, Ana Luísa relembra um dos incontáveis momentos de descontrole da mãe.

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    “Acordei com seus gritos terríveis e a vi ajoelhada na cama, apontando para o chão coalhado de baratas mortas, enquanto papai tentava acalmá-la. Você gritava tanto, que comecei a chorar de medo. Não propriamente das baratas, mas dos seus gritos e do seu olhar de pânico […]. Talvez por causa dessa cena, eu tenha passado a também ter medo de baratas, como se o pavor que você sentiu tivesse me impregnado para sempre.” 

    Matilde, a mãe, de fato domina a narrativa e bota a filha em um estado de terror constante. O pai, mero coadjuvante-marionete nas mãos da esposa (de classe alta, branca, linda), parece se libertar nos casos amorosos que tem e no relacionamento que cultiva depois do divórcio. É a mãe quem decide “quem pode viver e quem deve morrer”. 

    O consolo pode ser encontrado em três ocasiões. Nas árvores do quintal da infância, onde Ana Luísa ia se esconder da fúria materna; nas horas passadas na sapataria do pai — e quando estava doente.

    “Você me dava remédios de hora em hora, me punha para dormir na sua cama, media minha febre a noite inteira […]. Era tão bom receber sua atenção, seus cuidados, tanto que eu desejava não sarar nunca […]. Como eu quis ser amada por você de verdade, D. Matilde, sem fingimento, sem maiores senões”, narra, dolorosamente, a filha.

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    Relações mãe-filha na literatura (e fora dela)

    São muitas as obras literárias produzidas por mulheres que falam de maternidade ou tentam reconstruir a mãe pela palavra. Só para citar algumas: Um Amor Incômodo (Elena Ferrante), O Coração que Chora e que Ri (Maryse Condé), A Mulher dos Pés Descalços (Scholastique Mukasonga), Cartas para Minha Mãe (Teresa Cárdenas), Amada (Toni Morrison)… Em todas há a mesma urgência em manter a mãe viva a despeito da falta, construir-se a partir dos fragmentos de lembranças que, não havendo nada no lugar, se tornam a verdade sobre a figura materna.

    As relações mãe-filha de fato são complexas e intensas. Todas nós temos alguma experiência com o tema, seja porque somos mães, porque tivemos mães ou mesmo porque não as tivemos próximas e fomos obrigadas a lidar com sua falta.

    Acontece que a sociedade sempre legislou sobre como devemos ser: as mães e as filhas. De Maria, o ideal da virgem que concebeu, até as que ousam não querer tal destino, todo mundo acha que sabe como as mulheres — que se completariam pela maternidade — devem agir, ser e amar. 

    É sabido que uma das habilidades mais impressionantes do ser humano é a sua capacidade de encontrar semelhanças e diferenças entre os seres e eventos. A chamada “categorização” é imprescindível para o funcionamento da linguagem, da cognição e da aquisição do conhecimento.

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    O linguista norte-americano George Lakoff, em Women, Fire and Dangerous Things (1987) [Mulheres, Fogo e Coisas Perigosas] afirma que construímos modelos cognitivos idealizados (tradução de idealized cognitive models – ou ICM) para entender e atribuir significados ao mundo em que vivemos. Essas estruturas podem se combinar para formar um conceito. É o caso de  “mãe”.

    Para nós, mãe é um conceito formado por características bem reconhecíveis, tais como: aquela que dá à luz; que contribui com material genético; aquela que nutre e cuida da criança; a esposa do pai da criança; e a ancestral mais próxima da criança.

    Entretanto, ainda que haja ainda mais elementos neste ICM, “mãe” parece sempre ser mais bem definido a partir de um estereótipo: a mãe dona-de-casa, aquela que ama incondicionalmente seu rebento; afinal, “ser mãe, é padecer no paraíso” e, no coração delas, “sempre cabe mais um”.

    Você tem que querer ser mãe, amar de forma incondicional essa criança a partir do momento da descoberta da gravidez, abdicar de tudo para cuidar da família, pois esse é o objetivo de sua vida.

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    Além disso, também é importante que as mães demonstrem o mesmo afeto e amor para com todos os filhos, que devem ser tratados da mesma forma; afinal, não existe essa de filho favorito; mãe que é mãe de verdade, ama a todos igualmente. 

    Maria Esther Maciel desestabiliza o conceito de “mãe”, mas também o de “filha” . Não há amor instantâneo e infinito a partir da concepção, não existe tem que amar porque ela é sua mãe.

    O conceito “mãe” é formado por pessoas que são complexas, paradoxais, egoístas e, no caso do livro, até criminosas. Ao mesmo tempo, filhas também são pessoas.

    Isso também as torna complexas, paradoxais —mas não as obriga a chorar por alguém com quem dividem o DNA. Ela nos convida a libertarmo-nos da culpa que nos é infligida, essa sim muito pouco complexa e incumbida a todas da mesma forma. Essa Coisa Viva vem para lembrar que a gente não tem que coisa nenhuma. 

    Essa coisa viva

    livro Essa coisa viva

    Quando completa um ano da morte de sua mãe, que vivia no interior de Minas Gerais, uma botânica de renome internacional resolve pôr os pingos nos “is” de uma relação permanentemente marcada pela instabilidade, pela culpa e pelo rancor.

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