Em série, Natália Lage é mulher que rompe com seus tabus sexuais
A atriz vê na personagem uma inspiração para mulheres que querem revolucionar não só carreira mas também vivências românticas e sexuais
A fantasia sexual de Amélia era que um homem rústico e heróico, um bombeiro uniformizado, a resgatasse de um fogo e, com ela em seus braços, começasse a beijá-la e acariciá-la até que eles transassem. Mas a viúva não tinha a menor ideia de como faria para que esse desejo se tornasse real.
Foi uma tremenda sorte quando encontrou a SofiX, originalmente uma empresa de filmes pornográficos, que foi transformada sob nova gestão para satisfazer vontades femininas raramente reveladas.
Amélia recebeu o bombeiro (ou melhor, um ator fantasiado) e o cinegrafista em casa, tudo sob sigilo e com garantia de satisfação. Uma pena, porém, que a SofiX, assim como Amélia e os outros personagens, exista somente na ficção, mais especificamente na minissérie Hard, da HBO.
Estreando novos episódios este mês, Hard conta a história de Sofia, uma mulher formada em direito que ainda jovem abandona a carreira para criar os filhos. Por muito tempo, a vida de dona de casa preenche seu tempo.
Quando as crianças já são adolescentes e a perspectiva de mudanças radicais parece improvável, seu marido, Alex, morre inesperadamente. Sofia descobre, então, que a renda que sustentava a família vinha de uma produtora de filmes adultos. Pudica e horrorizada, decide vender o negócio e só muda de ideia por entraves financeiros.
Mais calma, diante do desafio, enxerga a oportunidade de transformar aquele ambiente em algo que tenha mais a sua cara. “A Sofia nem imaginava quão careta era. Mas, ao entrar nesse novo mundo, que a princípio gera nela repulsa, ela vai descobrindo capacidades adormecidas. Ela se surpreende com seu potencial não só em relação à sua sexualidade, mas no trabalho, nas relações com a família e os amigos”, fala a atriz Natália Lage, 42 anos, intérprete da personagem.
Para ela, a trajetória de superação e transformação de Sofia é inspiradora. “De repente, ela toma gosto por esse trabalho e vê que sabe executá-lo, é criativa. Abraça o objetivo de fazer um pornô mais feminino e feminista, que preze pelo prazer da mulher. Ela quer acrescentar mais poesia até para aceitar melhor a nova responsabilidade”, explica.
Fugindo do pornô machista e clichê, Sofia tem a ideia de dar às mulheres o prazer que elas não encontraram na vida sexual rotineira. São mulheres de 40 e poucos a 50 anos – algumas viúvas, outras separadas – que revisitam desejos nunca realizados e querem permitir-se mais.
De certa forma, a revolução começa com Sofia, que, mesmo resistente, engata uma relação com Marcello ou Mastroduro, um ator de filmes adultos que quer fazer uma transição de carreira para o cinema e o teatro. “Tivemos no set o apoio de alguns profissionais da indústria pornográfica colaborando em cenas, fazendo recomendações, explicando como funcionam os ambientes e as relações nessas produções. Essa troca foi incrível, derrubou muitos tabus”, fala.
Segundo Natália, o mais encantador foi observar a forma descomplicada como esses atores lidam com suas sexualidades. “Não é um universo fofinho nem fácil, afinal, nosso pornô ainda é muito machista. Sabemos que muitas mulheres fazem esses filmes por dinheiro, mas não se sentem bem. Porém, há também histórias de casais que começam com vídeos caseiros e depois se profissionalizam – eles transam, se divertem e não estão nem aí para julgamentos. Tem também muita diversidade de pensamento e temperamento. Você nem imagina que vai ter casal que faz pornô, é de direita e vota no Bolsonaro, mas existe! E reflete a multiplicidade do ser humano, isso é lindo; as contradições tiram a gente da caixinha e nos provocam a escutar e compreender antes de falar”, destaca a atriz.
A convivência com atores do ramo também contribuiu para construir o clima na SofiX, que é leve e divertido – até familiar – e sempre respeitoso. “Era uma preocupação evitar assédios e constrangimentos, temas que estão tão em voga hoje, então isso foi muito discutido tanto para o nosso set como para o ambiente da ficção”, diz Natália.
Em ambos, a nudez não foi usada como forma de submissão ao outro, especialmente para as mulheres, que encontraram equidade e liberdade. Na série, as atrizes argumentam com a chefe, por exemplo, a importância das aulas de pompoarismo, que são benéficas para o fortalecimento da região genital e para a lubrificação nas cenas de sexo.
“A gente economizaria no lubrificante”, justifica uma delas, argentina, com seu sotaque portunhol. “A nudez é naturalizada em sets de pornô. É como numa tribo indígena. Ninguém fica olhando para peito, bunda, pênis, porque eles estão acostumados com a exposição. Já nós somos criados dentro de um padrão que nos faz estranhar a nudez em lugares que não associamos como adequados”, reflete Natália.
As experiências para construção de Sofia e do clima da série trouxeram outros aprendizados para a fluminense – alguns extremamente surpreendentes. Ela descobriu, por exemplo, o conceito de fornifilia, o fetiche onde o parceiro deve permanecer imóvel e posicionado como uma peça de mobiliário.
Curiosa, se deparou também com o trabalho da sueca Erika Lust, diretora de cinema adulto feminista. Em um ímpeto semelhante ao de Sofia, Erika criou o projeto XConfessions (@xconfessions), no qual recebe relatos de fantasias e desejos femininos e os transforma em filmes com belíssima fotografia e roteiros que façam sentido – nada a ver com os diálogos vazios dos pornôs clássicos.
“Tem pessoas repensando o pornô e criando algo que se encaixe com o momento que vivemos, no qual as mulheres possuem mais autonomia, podem falar abertamente o que querem para o parceiro, explicar como sentem prazer”, acredita Natália.
Apesar dessa pequena evolução, ainda parece distante a possibilidade de uma empresa como a SofiX existir, especialmente pela questão do sigilo das imagens e dos vazamentos virtuais, que frequentemente levam ao linchamento feminino.
“Você teria que estar predisposta a correr o risco de aparecer alguma coisa. É um tabu muito enraizado, acabaria custando caro para essas mulheres viverem suas fantasias”, acredita a atriz. Para ela, porém, há ventos de mudança soprando, com gerações jovens mais livres e educadas sexualmente.
“Ninguém é obrigado a fazer tudo, apenas o que der vontade. Mas ter o direito de escolher sem ser julgada é fundamental. Isso vale para quem quiser manter relações monogâmicas ou para quem quiser explorar seus desejos mais profundos”, diz. Supondo que a SofiX existisse, qual fantasia sexual você gostaria de realizar?
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