Minha filha sempre foi uma paciente bem informada sobre seu diagnóstico e tratamento. Mas, no final, eu diria que ela sabia 80%. Quem sabia 100% do que estava acontecendo com ela era eu. Meu marido, Samuel, e nossos outros filhos, Gil e Cristiane, alimentavam um otimismo cauteloso. Eu negociava com a esperança. Mas sabia. Então, houve um dia em que eu soube mais do que nos outros.
Não sei explicar como: apenas soube. Naquele dia havia uma coisa aflorada em mim, algo que tinha a ver com as minhas raízes católicas e com uma crença inabalável em Nossa Senhora.
Foi mais ou menos um mês antes de Ana Michelle partir. Nós duas estávamos sozinhas no quarto do hospital. Ela se sentia bem, e perguntei se eu podia dar uma saída. “Claro, mãe. Vai pegar um cambalacho?” Cambalacho era nossa senha para tráfico de alimentos não permitidos no hospital. “Não, vou fazer outra coisa. Já volto.”
E saí, deixando minha filha um pouco curiosa e confusa. Afinal, eu contava nos dedos das mãos o número de vezes que tinha saído de perto dela desde setembro, quando havia piorado a ponto de ser internada. Eu sabia onde ficava a capela do hospital, mas nunca tinha ido lá. Fui pela primeira vez. E sabia exatamente o que fazer. Havia uma estátua de Nossa Senhora, bonita, simples. Eu me pus diante dela e ficamos olhando uma para a outra, não sei por quanto tempo. Eu precisava de coragem para fazer o que tinha decidido, e esperei a coragem vir, tomar conta de mim.
Chorei. Em pé, escorreguei as mãos pelo meu ventre, pelos seios, e as estendi em direção à santa, com as palmas voltadas para cima. “Nossa Senhora, estou tirando a minha filha de mim e te entregando. Não deixe que aconteça com ela o que aconteceu com o seu filho. Ele sofreu muito, e eu não sou capaz de suportar esse sofrimento. A partir de agora, a Michelle é sua, não me pertence mais. Pode levá-la quando quiser. Eu vou chorar, mas não vou reclamar nem gritar, porque ela foi minha por 40 anos. Só não deixe que ela sofra. Ela já teve sua cota.”
Foi assim que Nossa Senhora e eu nos entendemos. Fiquei um tempo ali, até me acalmar. Eu tinha feito uma coisa muito grande, impensável para qualquer mãe. Mas senti algum alívio. Parecia até que doía menos. Um pouco menos.
Quando voltei ao quarto, Michelle estava sentada no meio da cama. “Cadê o tráfico?”, me perguntou. Ela, pelo visto, não tinha acreditado em mim. ”Fui fazer outra coisa.” Comecei a contar: “fui encontrar com Nossa Senhora. A partir de hoje, você não me pertence mais. Pertence a ela. Acabei de tirar você de dentro de mim e te entreguei para Nossa Senhora”.
Nenhuma palavra pode descrever a intensidade daquele momento. Nem tenho essa pretensão, por isso apenas conto como aconteceu. Michelle ficou me olhando, assustada. “Se é assim, que assim seja”, foi tudo o que disse. E assim foi. Nas horas que antecederam sua partida, minha filha não teve dor. Não sofreu. Ficou rodeada das pessoas que mais amava.
No momento do último suspiro, estavam ao seu redor nós, sua família, e as amigas Pâmela e Ionara. Mais ninguém. Na minha inocência ou na minha ignorância, não sei qual das duas, acredito que Nossa Senhora me atendeu, porque foi tudo perfeito na passagem dela.
Nosso último dia foi de delicada intimidade. Como sempre, dividimos a mesma bandeja do café da manhã, embora eu tivesse a minha. Era o nosso costume, cultivado em tantas internações naqueles anos todos de convívio com o câncer. Depois, fiquei no celular enquanto ela batucava no computador. Estava trabalhando neste livro: tinha recebido a versão diagramada e se sentia aliviada. Ao meio-dia fechou o computador, feliz. “Missão cumprida! Livro encerrado”, disse.
Perguntei se ela estava com fome. Estava, mas rejeitou o almoço habitual e me pediu que buscasse um filé à milanesa no restaurante bacana do hospital. Disse que merecia uma refeição especial. Comeu tudo o que eu tinha trazido e se sentiu cheia o resto do dia. À tarde uma amiga veio visitá-la e conversaram até o começo da noite.
Quando a amiga foi embora, Michelle sentiu um mal-estar que não conseguia explicar. Apenas queria dormir. No começo da madrugada percebi algo diferente em sua respiração. Levantei e toquei nela: estava febril, os batimentos cardíacos disparados, a pressão baixa.
Tudo ficou frenético. Enfermeiros vieram com maca. UTI, me disseram. Arrumei nossas coisas e desci ao andar da UTI, onde poderíamos ficar com ela num quarto privado com todos os equipamentos de terapia intensiva. O coração quase voava no peito dela, chegando a 142 batimentos por minuto. Chamei Samuel: não queria ficar assistindo àquilo tudo sozinha. Quando me viu, Michelle abriu os olhos. “Mãe, meu coração está estranho. Mas é assim mesmo que acontece.”
Naquele momento, nossos conhecimentos se inverteram. Ela sabia 100%. Eu sabia 80%. Michelle estava morrendo e sabia. Eu não sabia — até o médico me chamar e sugerir, gentilmente, que eu reunisse a família, porque ela estava partindo.
Minha filha ainda viveria algumas horas, alternando momentos de lucidez e sonolência — jamais incoerência. Reclamou quando a irmã a abraçou chorando. “Eu estou viva!”
Nossa última conversa foi breve. Perguntei se queria que eu fizesse mais alguma coisa por ela, para ela. Se tinha algo mais a me dizer. Michelle não era de fugir de conversas difíceis, e já tivéramos muitas até aquele momento. Mas a verdade daquele instante era muito simples. “Mãe, a senhora fez tudo por mim. E eu já te falei tudo.” E eu lhe disse: “Pois eu quero que você saiba que será muito abençoada por Nossa Senhora”.
A dor de perder um filho é indescritível. Uma violação inconcebível das leis da natureza. Carreguei esse fardo com minha fé e com uma coragem que não sabia que tinha e que deve ter vindo dela, da filha que partiu. Cuidei de Michelle enquanto precisou, com zelo e amor, e faria tudo outra vez se necessário.
Ainda me pergunto como se vive depois de uma dor como essa. A resposta vem um pouquinho a cada dia. Apenas vou vivendo, do jeito que dá. As amigas dela vêm me visitar e rimos das bobagens do passado. As fotos me ajudam na pior hora da saudade. E este livro, que vem se juntar a Enquanto Eu Respirar e Vida Inteira, me traz o conforto de saber que ela ainda conseguirá ajudar muita gente. Mesmo que fisicamente não esteja mais aqui.
Se eu puder deixar uma única mensagem aos leitores de Ana Michelle, é esta: visite quem você ama. Não deixe passar oportunidades de estar com pessoas queridas. Elas podem não estar aqui amanhã. Minha filha me ensinou isso.
Este é o prefácio do livro Entre a Lucidez e a Esperança.