‘Hannah Gadsby: Nanette’ é o que você precisa assistir AGORA na Netflix
O especial de stand-up que estreou timidamente em meados de junho é a atração da Netflix mais comentada do momento. E com razão!
Provavelmente você nunca tenha ouvido falar de Hannah Gadsby, uma comediante australiana que virou assunto ao redor do mundo, desde que seu mais recente show de stand-up, “Nanette”, estreou na Netflix. Mesmo assim, pode ter certeza de que ela vai impactar você também.
Este não é um stand-up comum. O que difere “Nanette” das dezenas de apresentações neste formato – alguns bem ruins, inclusive – da Netflix? Bom, responder a essa pergunta sem estragar a surpresa é uma tarefa um tanto quanto ingrata. Mas uma coisa a gente pode dizer: Hannah não sobe ao palco apenas com o intuito de fazer rir, de ser espertona com uma ~crítica social foda~ aos moldes de tantos outros comediantes politizados. Ela vai MUITO além disso.
Sim, o show dela é politizado da cabeça aos pés. E é feminista. E fala especialmente sobre a vivência lésbica. Certamente as mulheres lésbicas são as que mais se identificam com “Nanette” e com todo o trabalho pregresso de Hannah, mas ela não se limita a esse nicho. Prova disso é que o especial da Netflix foi gravada na icônica Ópera de Sydney, uma das casas de espetáculo mais prestigiadas do planeta. Peixes pequenos não tem vez naquele palco e “Nanette” faz jus à relevância dessa artista.
Ainda tentando ao máximo não estragar as surpresas envolvidas nesse stand-up – não saber o mote central do espetáculo é um detalhe que enriquece a experiência de assisti-lo -, dá para dizer que “Nanette” tem um início meio fraco, pouco engraçado. Isso pode fazer com que muitos espectadores desistam de assisti-lo até o final, mas, sério, não faça isso. Acredite, você não vai ficar indiferente à segunda metade da apresentação.
“Nanette” é irretocável? Não. Mas não dá para falar sobre isso sem dar spoiler. Então, pare de ler aqui se você quiser fugir dele. Assista ao stand-up primeiro e depois volte aqui para a gente ~conversar~ sobre uma coisinha.
Crítica com spoiler
“Nanette” está sendo ovacionado por fazer uma coisa que a gente geralmente não vê num show de comédia stand-up: criticar a própria existência dos shows de stand-up. Lésbica assumida, Hannah Gadsby costuma abordar a vivência lésbica em suas apresentações – em tom de comédia, é claro. Nesse especial da Netflix, ela declara que vai parar de fazer isso.
O motivo? Hannah está exausta. Ela já não vê sentido em transformar sua trajetória em piada, pois essa trajetória é marcada por muita dor. Agora, essa mulher quer humanizar a si mesma no palco. Ela quer que o público compreenda o quanto os diferentes – como ela chama – sofrem para viver num mundo que não os aceita. Mas Hannah não quer se vitimizar, ela quer criar conexões. É aquela premissa clássica (e sempre válida): para conectar-me com o outro, eu preciso tomar conhecimento sobre as situações que ele vive.
Conexão é palavra chave do desfecho impactante de “Nanette”. O mundo precisa de mais conexão, mais compreensão e mais amor. Sim, Hannah está certa ao dizer isso e constrói uma narrativa tão sólida e inteligente que consegue impactar o público mesmo falando obviedades.
Só que lá nos minutos finais da apresentação, ela faz um decreto questionável: “É por isso que eu preciso largar a comédia. Porque o único jeito de falar a minha verdade e deixar a sala tensa é com raiva. Eu sinto raiva e acho que tenho todo o direito de sentir! O que eu não tenho direito é de espalhar a raiva. Não tenho. Porque a raiva, assim como o riso, pode unir uma sala cheia de estranhos de um jeito único. Mas a raiva, ainda que ligada ao riso, não vai aliviar a tensão. Porque a raiva é uma tensão. É uma tensão tóxica e contagiosa. Seu único propósito é espalhar um ódio cego e não quero participar disso. Porque uso a liberdade de expressão com responsabilidade e poder me colocar como vítima não torna minha raiva construtiva. Ela nunca é construtiva”.
Anger é a palavra usada por Hannah, e que foi traduzida como raiva. Mas raiva não é bem o sentimento expressado pela palavra anger seria mais algo como braveza, ou até fúria (mesmo que exista a palavra fury também). E eu discordo de que esse sentimento tenha como único propósito espalhar o ódio. No contexto apresentado em “Nanette”, essa anger é uma resposta ao ódio. Uma resposta viceral, um grito que não pode mais ser contido, pois ele está inundado de dor e inconformidade.
E esse grito, essa fúria, ela é construtiva sim. Ela é o estopim, a chama latente que alavanca a busca por mudanças. Que traz coragem para o enfrentamento. Stonewaall foi sobre fúria. O movimento sufragista foi sobre fúria. A luta pela pela democracia é sobre fúria. E tantos outros atos revolucionários também o são.
Hannah está exausta da fúria que carrega dentro do peito e ela tem todo o direito de estar. Porque esse sentimento avassalador que nos move também é o mesmo que nos deixa em frangalhos ao final do dia. Ele cansa mesmo. Cansa muito.
Seja como for, obrigada, Hannah, por dividir sua dor e sua fúria com a gente. Tenha certeza de que, como você pediu, nós vamos ajudar a cuidar da sua história.