Desde a adolescência, Luciana Gimenez é alvo de ataques machistas. Mas, com o passar dos anos, aumentou a crueldade das ofensas – que questionam sua inteligência e a julgam promíscua. Mesmo no auge das conversas sobre feminismo e sororidade, ninguém nunca sai em sua defesa. Por que com ela é permitido? Por muito tempo, a apresentadora de 51 anos evitou falar com medo de ser acusada de vitimismo. Em CLAUDIA, pela primeira vez, ela compartilha como o processo a feriu e revela a criação de um projeto para proteger outras mulheres
“Há 20 anos sou alvo de ataques constantes. Não sei como isso começou. Agora, a leitura que faço é que alguém falou mal de mim e um monte de gente seguiu. Ninguém pensou na responsabilidade emocional desse comportamento, nas consequências.
Sou uma pessoa sensível. Até hoje, após um ataque, choro. Nunca rebati por medo de piorar. Já ouvi que sou desqualificada, interesseira, promíscua, burra. Eu sei de mim. Trabalho desde os 15 anos, ajudo financeiramente várias pessoas da minha família, crio meus filhos, garanto meu sustento.
Quem me conhece, sabe que sou tímida. Numa festa, fico pelos cantos, não gosto de aparecer. Só entro no personagem mais descolado na hora do trabalho. Ainda assim, sem me conhecerem, as pessoas criaram essa imagem da menina privilegiada. E aí não tem problema bater, porque ela aguenta. A verdade está longe de ser essa.
Não sei por que fui escolhida. Acho que é aleatório. Na Austrália, eles têm uma expressão que é tall poppy seeds. Naquelas plantações de papoula, a que é mais alta eles cortam por ser diferenciada. Acho que é isso.”
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Fama e exposição
“Minha mãe foi uma atriz famosa, fazia novelas, e era casada com o Jece Valadão, também muito conhecido. Eu nasci nessa família, então desde sempre, quando a gente ia nos lugares, tinha alguém fotografando. Mas minha mãe não parecia sofrer como eu. Não sei se é porque eram outros tempos, revista semanal, sem internet. Ou também é porque você nunca sabe de verdade até viver.
Eu sempre tive muito orgulho da minha mãe, mas ser filha de famoso tira um pouco da sua identidade, então, durante a adolescência, busquei independência e fui morar na França. Trabalhava como modelo e não pedia dinheiro. Eu me virava. Pagava minhas contas sem espaço pra luxo.”
Abusos
“Meu corpo se desenvolveu muito cedo. Com 13, 14 anos, eu já era alta, tinha bocão, pernão. Era vista como sensual. Pais de amigas davam em cima de mim. Lembro de uma vez, quando estava indo na academia, usando uma calça de ginástica rosinha, um homem passou na rua e gritou: “Que tesão!”. Depois, fez aquele barulho horrível com a boca. Corri pra casa na mesma hora, perguntei pra minha mãe o que aquilo significava. Depois disso, nunca mais saí de casa sem uma bolsa ou um casaco, pra cobrir a bunda.
Quando trabalhava como modelo, o assédio era constante. Já aconteceu de eu perceber que o fotógrafo estava se masturbando atrás das luzes. Eu tinha 16 anos. Saí correndo, liguei para a agência e eles perguntaram se eu tinha terminado o trabalho.
Há algumas semanas, conversei com amigas e todas já tinham tido casos de abuso sexual. Se eu, quando jovem, tivesse a informação e o conhecimento que tenho hoje, tinha colocado mais gente na cadeia, como quando, em Munique, um homem me agarrou pelo braço na escadaria do metrô e se masturbou. Chegando em casa, meu namorado me incentivou a ir na polícia. O agressor foi preso e julgado.”
“Evito dar palanque, mas meus filhos ouvem, leem, veem tudo isso. Ganha repercussão e vai sendo repetido em todos os lugares”
A primeira gravidez
“Foram tantas as histórias que inventaram quando engravidei do Lucas. Processei o homem que escreveu num livro que transei com o Mick [Jagger] num canil. E ganhei. Eu não gosto de entrar em brigas, normalmente evito para não me desgastar. E vou engolindo. Mas algumas coisas não dá.
Nessa época, fui chamada de tanta coisa. Eu era interesseira, estava atrás de dinheiro, fui coisa de uma noite só. É como se homem famoso não pudesse se apaixonar, como se não fosse real o que aconteceu. Fora que ninguém sabe de verdade, é tudo inventado. O Mick até hoje é um dos meus melhores amigos. Ele me ensinou muita coisa sobre ser casca dura com a imprensa.
Na gravidez do Lucas, passei os nove meses chorando. Engordei 30 quilos, porque comia de ansiedade. Eu lembro de uma vez que saí para tomar um açaí em Ipanema e peguei um jornal. Quando vi, me chamava de prostituta. Foi muito pesado.
Morando em Londres, era perseguida pela imprensa dos tabloides. Só durante a gravidez fizeram mais de 100 capas sobre mim. Nenhuma verdade. Grampearam meu telefone. Uma vez, uma jornalista pegou o mesmo voo que eu até Nova York e sentou ao meu lado para me fazer perguntas.
Com quatro meses de gravidez, fugi para a Austrália em busca de paz. Quando desci do avião, já tinha fotógrafo me esperando. No dia em que o Lucas nasceu, ficou um segurança na porta do quarto e eu saí da maternidade pela cozinha, pra fugir da imprensa.
Também já inventaram que o Lucas tinha um tumor incurável. Uma vez, numa festa da escola, outra mãe tirou uma foto dele e vendeu para uma revista. Fiquei irada. Fui atrás da história até descobrir tudo. Ninguém me apoiou, nem o diretor. Ele me olhava como se eu fosse louca, como se tivesse armado toda a situação.”
Dinheiro
“Eu nem conhecia o Marcelo [Carvalho Fragali, sócio e vice-presidente do canal] quando vim trabalhar na RedeTV!. Fiz o casting como todo mundo. Foram dois testes. Fui aceita por isso, não teve nenhuma conexão. Inventaram que eu casei por interesse, mas quem fica 15 anos com alguém por interesse? O dinheiro que ele e o Mick me dão, porque a lei estabelece assim, é para o sustento dos meus filhos, para escola, plano de saúde, alimentação. Eu mesma me sustento, não tem essa de usar a grana pra luxos.”
Jorge Kajuru
“Essa pessoa me dá até arrepio de falar. São 20 anos de ofensas à minha honra. Eu nem o conheço. Aguentei por muito tempo, mas era tortura psicológica. Não tinha mais estômago e processei, pra ver se parava. Ganhei, mas a pessoa não aprendeu a lição. E ainda não recebi o dinheiro. Evito dar mais palanque, mas meus filhos agora são grandes e ouvem, leem, veem tudo isso. O problema é que ganha repercussão, aí vai sendo repetido em todos os lugares e tem quem dê palco ainda.”
As dores
“Acho que todas essas vivências me afetaram. Sempre penso que poderia ter feito mais da minha carreira. Recusei convites para ser apresentadora em Nova York. Eu me tornei uma pessoa mais introspectiva, falo pouco da minha vida com profundidade, prefiro fazer brincadeiras para desviar o foco. Tenho rompantes. Às vezes, me fecho, sumo, preciso ficar sozinha.”
“Eu me tornei uma pessoa mais introspectiva, falo pouco da minha vida. Tempo rompantes, me fecho, sumo, preciso ficar sozinha”
O projeto
“Foi um processo permitir que a dor de todas essas experiências e de muitas outras que não gosto nem de lembrar virasse um projeto. Falaram muito na minha orelha. Não gosto de contar da minha vida e não queria acessar essas lembranças, mas entendi que posso usar minha voz e o espaço público que tenho para evitar que outras mulheres passem por isso. Quero ser um instrumento de mudança e levar informação a elas, conscientizar.
Tantas vezes, no SuperPop, conversei com vítimas de relacionamentos abusivos, mulheres que tiveram suas fotos íntimas expostas e perderam o emprego. Mesmo assim, quando eu tive um amigo e colega de trabalho tóxico, não percebi. Precisei de um toque de outra pessoa para me dizer que a relação era abusiva.
A gente normaliza, só que a sensação do ataque não passa, mesmo que sigamos em frente. São impactos psicológicos. Quero falar para as mulheres que elas não devem aguentar ninguém dizendo que elas são feias, burras, criticando o corpo delas. Se eu ajudar uma, duas, dez já vou ficar feliz. Quero que elas saibam antes coisas que eu só descobri mais velha e que teriam impedido que eu passasse por certas situações horríveis.”
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