Faltavam apenas alguns minutos para as 8 e meia da noite de sábado. Maju Coutinho, 40 anos, já estava sentada ao lado do colega Rodrigo Bocardi, de costas para a redação na Rede Globo, no bairro do Jardim Botânico, no Rio de Janeiro. A vinheta que chega à casa de milhões de brasileiros anunciava o noticiário de maior audiência da televisão aberta.
Era a estreia da paulistana naquela bancada – e a primeira vez que uma mulher negra ocupava a renomada posição. Com as pálpebras fechadas e a respiração acelerada e entrecortada pelo nervosismo, Maju suspirou. Uma imagem resgatada da infância invadiu seus pensamentos.
Viu-se no bairro de Vila Matilde, na Zona Leste de São Paulo. Na cena, ela pegava o pilão de macerar limão para fazer as vezes de microfone e usava o tampo de madeira de uma pequena mesa como bancada. Aquela mesma Maju agora estava à frente do Jornal Nacional. Foi um estado de catarse pelo encontro das duas pontas da vida. “Boa noite”, disse ela, encarando a câmera, no dia 16 de fevereiro.
A notícia de que estava escalada para a missão havia chegado fazia pouco tempo. Como só soube na quarta-feira anterior, mal pôde se preparar. Na noite da véspera, tentou de tudo para pegar no sono, sem sucesso. A meditação foi interrompida por uma urgência terrena.
“Lembrei que havia visto uma mecha de cabelo completamente fora do lugar na gravação do programa piloto. Como foi tudo corrido, não consegui me planejar para fazer um corte. Mandei mensagem no WhatsApp às 2 da manhã para um cabeleireiro conhecido pedindo socorro”, conta, aos risos.
Também foi antes da estreia que Renata Vasconcellos, âncora do jornal durante a semana, chamou Maju para uma conversa. “Ela me tranquilizou. Disse que eu poderia corrigir caso errasse; que eu poderia recomeçar caso engasgasse. Faz diferença se sentir abraçada e ouvir uma palavra amiga em momentos de insegurança”, conta Maju. A colega ainda ofereceu o camarim para que ela se concentrasse antes do trabalho.
O acolhimento serviu como contraponto a uma maré de comentários na web que negavam o feito da paulistana. Internautas questionaram as comemorações argumentando que Maju não era a primeira mulher negra a apresentar o Jornal Nacional. Citavam Glória Maria e Zileide Silva. De fato, são figuras importantes.
Glória foi a primeira repórter a entrar ao vivo no telejornal, lá em 1977. Zileide é dona de uma carreira sólida e credibilidade ímpar. Mas lamentavelmente nenhuma das duas esteve na bancada do Jornal Nacional. O pioneirismo é de Maju, creditado pela chefia à competência.
“Reconheço o simbolismo do momento. Foram 50 anos de jornal sem uma mulher negra na bancada. Nos meus 40 anos, nunca havia visto essa imagem. É uma conquista para essa comunidade, que merece estar ali também. Talvez eu tivesse caminhado com maior confiança se contasse com mais referências”, defende.
Entre os episódios mais emblemáticos envolvendo Maju estão os ataques racistas sofridos nas redes sociais em 2015. O caso foi para a Justiça e tramita em segredo. Na época, outros colaboradores da Rede Globo e fãs se posicionaram na web com a hashtag #SomosTodosMaju.
“Agradeci a meus amigos e meus pares pela defesa, mas frisei que o racismo é cotidiano na minha vida. A diferença é que daquela vez fui exposta em praça pública”, relembra. Felizmente, não voltou a receber esse tipo de comentário. “Acho que foi um ‘cala a boca’. Creio que as pessoas entenderam que ofensas raciais são crime e que tenho amparo constitucional para me defender.”
De onde vem a força
Na adolescência, Maju foi uma menina insegura e levou alguns anos até trocar o alisamento do cabelo por tranças. A mudança rolou depois de descobrir a revista Raça, publicada hoje pela Editora Pestana Arte & Publicações.
“O autoconhecimento é fundamental para o enfrentamento. É preciso desenvolver mecanismos para que o racismo não mine a gente. Ele nos adoece porque nos deixa em posição de reação o tempo inteiro”, diz. Maju também tomou as mulheres da família como inspiração, especialmente pela força e pela independência.
Dos laços herdou a resiliência para se blindar. Via os pais, os educadores Zilma e João Raimundo Coutinho, envolvidos em discussões sobre direitos civis. Credita a habilidade em resistir à consciência da realidade. Mas entendeu que nem sempre precisa se expressar. “A cobrança de posicionamento é difícil. Hoje aceito quando tenho que parar e estudar sobre determinado assunto antes de emitir opiniões.”
A sabedoria de Maju também é fruto das trocas ricas que faz por onde passa. Os primeiros mentores eram da TV Cultura, emissora onde iniciou a carreira, em 2005. Ao chegar à Globo, dois anos depois, precisou de ajuda. “Começava a produzir matéria às 5 da manhã para entrar ao vivo às 6 e meia e montar uma reportagem para meio-dia. Não estava acostumada a esse ritmo. Pensava que teria um infarto, que não conseguiria. E, então, várias chefes mulheres me estenderam a mão”, relembra.
Elas elogiavam, mas também sabiam puxar a orelha quando necessário. “Nós cooperamos umas com as outras. Estamos construindo a sororidade na prática. Fico arrepiada ao ver a mudança de postura das mais novas. Já presenciei moças respondendo educadamente a piadas machistas vindas de homens. Isso era inimaginável anos atrás.”
A jornalista ganhou mais confiança quando topou o desafio de ir para a meteorologia. Debruçou-se sobre os livros para entender e traduzir os fenômenos. Das amigas, como a comentarista de economia da GloboNews, Juliana Rosa, vem o reforço da certeza de que trabalha a serviço da notícia. “O clima muda a vida das pessoas, desde o fotógrafo que tem que fazer esta capa hoje até o feirante. Se mexe com o cotidiano, é importante”, reflete.
O retorno positivo surtiu efeito na autoconfiança. “Percebi que o telespectador sabe quando é de verdade. Foi quando comecei a me sentir mais dona da mim.” Entre os rituais que realiza antes de entrar no ar estão afirmações positivas.
“Vou para um lugar silencioso, faço um exercício de respiração e relembro as intenções do meu trabalho. Repito para mim mesma: “Que eu seja autêntica, que eu comunique com excelência’ ”, confessa. Outro objetivo é que seu trabalho encoraje. “Quero que ele abra portas para outras. Só tomo cuidado com o discurso da meritocracia. Não gosto de propagar a ideia de que basta ralar para chegar lá. Muitas se dedicam e não chegam. Estou aqui porque não vim de uma família miserável. Meus pais puderam me dar condições e tive doses de sorte.”
#Autocuidado
A paz para seguir o caminho vem de longe das câmeras também. Divide jantares inspiradores com a executiva Rachel Maia, CEO da Lacoste no Brasil, e a cantora Paula Lima. A atriz Ana Flávia Cavalcanti é a novata no grupo animado. Elas se reúnem para conversar e trocar ideias.
Em casa, recarrega a bateria com meditação e ioga. Quando percebe que está acelerada logo cedo, desliga a TV e fica longe do celular. Para ela, ignorar a sensação de sempre estar perdendo algo é um método curativo. “Faço terapia e sou muito ligada à questão do autocuidado. Estou constantemente me observando”, conta.
Atualmente, a cabeça está nas férias ao lado do marido, o publicitário Agostinho Paula Moura, 55 anos. Devem conhecer São Francisco e curtir um roteiro de vinhos na Califórnia, nos Estados Unidos. Na mesa de cabeceira, estão dois livros: Minha História (Companhia das Letras), de Michelle Obama, e Sapiens – Uma Breve História da Humanidade (Harper), de Yuval Noah Harari, mas Maju está desbravando o mundo dos podcasts.
A meta pessoal para os próximos anos é caminhar com ainda mais leveza. O olhar para o passado e para o futuro é sereno, exceto pela empolgação ao mandar um recado para aquela Maju pequenininha. “Eu diria: ‘You got it!’ ”, diverte-se. Em português, seria algo como “Você conseguiu!”. Alguém duvida? Nós, não.
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