Rita Lobo: “Explicar o que é comida de verdade é revolucionário”
A chef, apresentadora e empresária quer ensinar o brasileiro a se alimentar com comida de verdade. Para isso, mantém site, livros, programas na TV e Youtube
A sala de jantar do endocrinologista José Ignácio Lobo e de sua mulher, Maria Rita, era ampla. Nas festas em família, o casal reunia os dez filhos, respectivos cônjuges e 25 netos. Apesar da multidão, as refeições eram silenciosas. Todos falavam baixo em respeito aos hábitos formais do patriarca. Entre os comensais, a neta Rita, batizada assim em homenagem à avó, gostava de observar o prazer com que o avô comia seu prato favorito: sopa de ervilhas com paio. Meticuloso, só dava a primeira colherada quando as torradas, fatiadas com o pão francês da manhã, eram servidas. “Ele tinha um ritual muito legal, importante na construção do meu universo culinário: o prazer à mesa”, conta a chef, apresentadora e empresária Rita Lobo, 42 anos.
Das refeições na casa da família, no Itaim, em São Paulo, ela herdou o gosto por todo o entorno do ambiente e uma tapeçaria, que volta e meia aparece no cenário de seu programa, Cozinha Prática, na oitava temporada no GNT. Rita é uma usina de produção de conteúdo com foco em comida. Não caia na besteira de dizer que é gastronomia. “É comida. Comida de verdade”, fala. Uma causa norteia tudo o que produz (e não é pouca coisa): ensinar o brasileiro a cozinhar. Simples assim. Para ela, essa é a chave para uma vida saudável e até mesmo feliz.
A polêmica que protagonizou há pouco tempo, na internet, faz parte dessa cruzada. Ao responder a um internauta por que não ensina a fazer maionese com óleo de coco e iogurte, Rita foi direta e reta: “1) porque não é maionese; 2) trate de seu distúrbio alimentar”. Pronto, uma bomba polarizadora de opiniões foi detonada. Teve quem achasse o fim da picada, claro. Mas o tweet soou como alforria para boa parte dos internautas.
“Comida é fonte de saúde”, diz Rita, na sede do Panelinha, escritório com duas cozinhas profissionais, um estúdio, ilha de edição, redação, 20 funcionários (só dois homens) e um sócio: seu marido há oito anos, o jornalista e publicitário Ilan Kow, 46 anos. Nesses dois andares, a poucos quarteirões da casa dela e para onde Rita vai a pé, são produzidos os vídeos para o YouTube, o programa de TV, o site homônimo da empresa (e seus blogs) e os livros. O resultado em números: na internet, Rita é seguida por 1 milhão de pessoas; seus livros de receitas já venderam cerca de 500 mil exemplares (o mais recente, O Que Tem na Geladeira, lançado em setembro passado, está na lista dos mais vendidos de VEJA). Além dos próprios títulos, ela publicou pela editora que mantém com o Senac mais quatro, assinados por outros autores, todos sobre culinária, claro.
A ex-modelo, que aprendeu a cozinhar nos anos 1990 em uma faculdade de Nova York, o Institute of Culinary Education, e foi dona de restaurante, acha que a luta pela alimentação inclui a batalha diária para levar os filhos tanto para a cozinha como para a mesa. Sem celular. É ali, conversando com Dora, 12 anos, e Gabriel, 15, as enteadas Gabriela, 17, e Daniela, 15, e o marido, que ela sente que a missão está sendo bem cumprida.
Como essa onda gourmet que vivemos nos últimos anos impactou nossos hábitos alimentares?
Tenho a impressão de que essa tendência começou há uns dez anos, e era uma necessidade disfarçada de modismo. Na década de 1960, as mulheres cozinhavam; em 1970 e 1980, elas foram trabalhar fora de casa e a indústria vendeu a ideia de que cozinhava por você ao entregar industrializados. No Brasil, não foi bem assim porque até pouco tempo havia mão de obra doméstica acessível. Aumentou a obesidade e percebemos que, do jeito que ia, não dava. Eu me formei em 1995 e comecei a escrever sobre comida na Folha de S.Paulo no ano seguinte. Até então, só CLAUDIA COZINHA tinha conteúdo sobre o tema. Aos poucos, os meninos começaram a cozinhar e, depois, as meninas. Trouxemos de volta para dentro de casa esse ato tão essencial. E deixou de ser uma coisa de submissão ao marido, como na época da minha mãe. O raio gourmetizador teve sua função. Mas, como todo modismo, vem caindo no ridículo.
Seu foco é esse retorno às raízes?
As pessoas não sabem mais cozinhar. Por isso, minha insistência em ensinar o básico. É bacana fazer risoto, mas seria mais legal antes dominar o arroz com feijão, os legumes, as verduras, para depois variar. A nutrição moderna mostra que os países com padrão alimentar tradicional estabelecido apresentam os menores índices de obesidade. A dieta mediterrânea, por exemplo, é a mais conhecida porque foi a mais estudada pelos americanos, que não têm padrão alimentar tradicional e estão sempre tentando inventar uma dieta nova, importar. Japão, França e Espanha são lugares com padrões fortes, que ajudam a blindar a população contra a comida pronta industrializada, as dietas malucas dos fat free, glúten free, sem lactose e sem graça. São povos mais saudáveis. O padrão alimentar tradicional do Brasil era maravilhoso até trocarmos a comida de verdade pela industrializada. Quem está procurando uma alimentação saudável precisa aprender a fazer os básicos da cozinha. E prestar atenção nas pegadinhas da indústria, como caldo de tablete, molho de tomate com o “caseiro” no rótulo. Vire o rótulo e veja que é cheio de conservante, química.
Você lê todos os rótulos?
Compro pouca coisa pronta; eventualmente um molho inglês ou coisa do gênero. O problema dos aditivos usados pela indústria é que eles incluem uma gororoba que simula sabor, textura e aroma de comida de verdade. Só que não tem nada a ver com o original.
Você fala do lado técnico e do social da alimentação com propriedade. Estuda muito?
Sim. Além disso, o Panelinha tem uma parceria com o Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde (Nupens) da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo, que há 30 anos observa a alimentação dos brasileiros. No meio da década de 1980, eles notaram que os índices de obesidade estavam crescendo e cruzaram com um dado da Pesquisa de Orçamento Familiar que apontava uma queda no consumo de açúcar, sal e óleo. Ficaram intrigados porque, naquela época, esses itens eram os vilões da alimentação. A conclusão foi essa troca da comida caseira pelo fast-food ou o congelado industrializado. Eles entenderam que não adiantava falar que a pessoa precisa comer três porções de carboidrato, duas de proteína e apenas uma de gordura. A população não é doutora em nutrição. Então, como faz para garantir uma alimentação saudável? Explica a diferença entre comida de verdade e de mentira; aí está a grande revolução. Você não terá mais dúvidas entre um biscoito light ou uma barrinha de cereais. A resposta é: nenhum dos dois. Coma uma fruta, um pão com queijo, algo de verdade.
Sua missão é garantir que essa informação chegue ao público em geral?
O blog Alimentação Saudável, dentro do Panelinha, publica diariamente uma dica baseada nas informações científicas do Nupens. E, de certa forma, esses estudos norteiam o conteúdo que produzimos. Além disso, há 17 anos estou em contato diário com os leitores. Sei quais são os obstáculos que os afastam da cozinha.
E quais são?
A conversa sobre alimentação ficou de escanteio. Quando alguém me fala “não tenho tempo para cozinhar”, ouço “não sei cozinhar”. Depois disso vem a falta de entendimento do que é saudável. É muito cômodo comprar lasanha light. Mas, se você olhar um pouco além, perceberá que não é bom. Cozinhar é uma ferramenta para uma vida mais saudável e até mais feliz.
Você se considera uma alfabetizadora culinária?
Costumo dizer que cozinhar é como ler e escrever: todo mundo deveria aprender. Não nascemos sabendo. Acho machista a história de que é um dom – é um jeito de resumir isso ao feminino. Voltando à analogia, claro que alguém vai se tornar autor, cronista, o Antonio Prata da cozinha; e outro não conseguirá nem fazer um e-mail direito, vai preferir mandar mensagem de voz.
Mas cozinhar dá trabalho mesmo…
Sim. Para fazer um prato, tem de ir ao mercado, à feira. Como tudo na vida, precisa de planejamento e divisão de tarefas ou não há alimentação saudável. No caso dos solteiros, a divisão de tarefas é suprida pela quantidade menor a ser produzida. Num fim de semana, você cozinha um panelão de feijão e divide em porções, que podem ser refogadas a cada dia com algo diferente: alho- -poró, alho, cebola… Nas famílias, dividir as tarefas não é dizer: “Meu marido me ajuda. Ele seca a louça” (risos). A responsabilidade pela alimentação é de todos os adultos da casa, até mesmo a de trazer as crianças e os adolescentes para a cozinha e para a mesa.
Como isso acontece na sua casa?
Nossa casa é zero padrão. Até porque no Panelinha tenho quatro cozinheiros testando receitas praticamente todo dia. Brinco que é o único lugar onde se leva marmita do trabalho para casa. Nos fins de semana, o Ilan é muito mais dono da cozinha do que eu. Para ele, cozinhar é terapêutico. Mas também tem momentos em que não posso contar com ele. Num dia em que ficou doente, banquei a iídiche mama: fiz um monte de caldo de galinha. E um quibebe de abóbora cabotiá com sálvia e um rosbife gigante, que dividi em pedaços e guardei parte no freezer para descongelar durante a semana. Quando tem gravação, uma vez por semana, chego depois das 22 horas e só quero banho e cama. O ambiente no estúdio é quase hostil. São 15 pessoas debaixo de luz forte, cheiro de comida. Se transpiro, tem que retocar a maquiagem. As pessoas perguntam: “Como você faz para não se sujar?” A Gloria Steinem (jornalista americana e ativista feminista) diz que não se deve acreditar em tudo que se lê. Acrescento: “Nem em tudo que se vê na televisão”.
E a alimentação dos filhos?
Segue o padrão brasileiro: arroz, feijão, arroz integral com grão-de- -bico, uma carne, legumes, verduras.
Eles cozinham?
A Dora é uma superboleira. Faz de olho, pega o que estiver na cozinha, mistura e sai maravilhoso. Eu preciso de medidas! A Gabi, filha do Ilan, faz pães incríveis, quer aprender os básicos e é quem mais ajuda no fogão. Os outros são responsáveis por mesa e limpeza. Mesa cheia é legal – e uma vitória para nós!
Como é trabalhar com o marido?
Conversamos muito antes de isso acontecer, em 2014. Tenho enorme admiração profissional pelo Ilan. Mas ele tinha um ciclo a cumprir e só veio quando sentiu que estava pronto. Foi na mesma época em que comecei a produzir o programa. Fazemos tudo muito juntos. Neste ano, nos tornamos sócios. O brasileiro é tão machista que no início vinham me perguntar se ele ia ser meu agente. Ou se ia se encarregar do financeiro. A visão é de que o homem cuida do administrativo e a mulher do criativo. Na verdade, ele é muito mais criativo do que eu, e sou muito mais executiva do que ele. Trabalhamos juntos porque temos um propósito comum, que não é só um negócio para ganhar dinheiro. A gente se sente construindo um projeto de educação. O Ilan tem uma visão estratégica muito forte. Sou mais mão na massa.
É unção divina você ser magra?
Não é! O que falo é o que faço. O segredo é a quantidade. Mas tem a genética também – meus pais são magros. E tem histórico: cresci numa casa estruturada de alimentação super-regrada. Mantive isso.
Deve ser difícil manter essa rotina aqui, com essa oferta toda.
É um inferno! A única solução é comer metade do que poderia. Por exemplo, numa época eu queria achar a massa de torta perfeita. Naquela semana, experimentei todas, e o jeans terminou meio apertado. Aí não tem magia: precisa segurar. Não gosto de ginástica. Mas ando pra burro. Faço tudo a pé.