Decisivas, mulheres negras precisam estar na estratégia das empresas
Conselhos de administração das grandes companhias devem ter representatividade se queremos construir uma sociedade mais justa e sustentável
As estatísticas constatam o que observamos na prática. O mercado de trabalho é especialmente duro para as mulheres negras. Ainda que correspondam a um quarto da população, elas recebem os menores salários em comparação com homens brancos e negros e com mulheres brancas, têm empregos desvalorizados e são mais acometidas pela informalidade. Há, contudo, as que romperam essas barreiras e alçaram-se a cargos de liderança e posições executivas. Ao chegarem lá, viram-se desacompanhadas de suas semelhantes.
Indo ainda mais longe, até os conselhos de administração de grandes companhias com ações negociadas em bolsa, as mulheres negras brasileiras estão completamente ausentes. Esse grupo, composto geralmente de cinco a 11 pessoas, representa a mais poderosa estrutura para delinear estratégias de longo prazo para as empresas; é ele que define para onde o negócio deve caminhar e como garantir sua prosperidade. O conselho dá norte também a questões mais profundas, típicas da forma como lidamos com os empreendimentos na última década, como os impactos gerados à sociedade e ao planeta.
Pode parecer exagerado projetar todo esse poder em um grupo pequeno de indivíduos, mas estamos falando de companhias avaliadas em bilhões de reais e com receitas que ultrapassam as de alguns países. Elas são definidoras do futuro que teremos – e a lógica imposta a elas pode ser estendida a qualquer tamanho de empresa. Por tudo isso, devem ser representativas. Entretanto, a cúpula da administração é, quase sempre, ocupada por homens brancos, padrão que tem se mostrado difícil de alterar.
Atualmente, entre 100 grandes empresas – integrantes do índice IBrX 100, da Bolsa de Valores de São Paulo, a B3 –, 34 delas não têm nenhuma mulher ocupando uma cadeira no conselho e outras 35 contam com apenas uma, de acordo com números levantados pela frente brasileira da iniciativa britânica 30% Club, que defende ao menos essa proporção de mulheres. Apenas seis das empresas observadas estão no patamar.
“As companhias não estão isoladas da sociedade. Não ter diversidade na liderança, sob diferentes aspectos, tem gerado perda de reputação e pressão de investidores, mas analisar essa questão também tem a ver com o tipo de negócio que se quer ser a longo prazo. É preciso ter metas”, diz a cofundadora da campanha, Olivia Ferreira. No total, as mulheres correspondem a 11,28% do total de 856 assentos disponíveis. Embora essas empresas sejam obrigadas a fornecer publicamente informações sobre currículo, idade e até, indiretamente, salários dos conselheiros e executivos, não fornecem dados raciais.
Há consenso no mercado sobre a necessidade de haver mudanças, mas isso não obrigatoriamente gera resultados expressivos ou à velocidade que gostaríamos. “Um dos motivos para que os perfis continuem os mesmos é que, nos conselhos, os homens indicam seus pares. As discussões sobre racismo, que se tornaram tão fortes no mundo neste ano, podem ter trazido essa urgência, e eles não estão alheios”, afirma Valéria Café, diretora de Vocalização e Influência do Instituto Brasileiro de Governança Corporativa (IBGC).
No entanto, as mulheres negras não são lembradas, e a omissão é justificada sob o argumento de que não existem profissionais o bastante, suficientemente capacitadas ou interessadas. Mas o desejo das mulheres de participar, de modo geral, é gritante. Neste ano, o programa de diversidade em conselho promovido pelo IBGC em parceria com a fundação Women Corporate Directors (WCD) recebeu 800 inscrições, selecionando 40 delas para formação.
Tornar-se visível contribui para que outras mulheres persigam a mesma trajetória. Porém, apenas a representatividade não encerra o trabalho. Por muito tempo, Rachel Maia, 49 anos, foi a única executiva negra a se destacar à frente de empresas como Pandora e Lacoste, da qual ela saiu em setembro passado. Desde 2019, é presidente do conselho consultivo do Unicef. Agora está decidida a trilhar o mesmo caminho no setor privado. “Hoje tenho uma opinião diferente sobre ser conselheira, algo em que antes não pensava a fundo. Passei a enxergar como oportunidade”, diz Rachel.
Ela pretende estar em conselhos de quatro diferentes setores e mantém conversas avançadas com algumas companhias, abertas e fechadas. Se assumir uma vaga em abril, quando há trocas de mandatos de dois anos, poderá ser pioneira no seleto grupo de conselheiros de companhias abertas. Estar lá seria um começo, mas há espaço para ir além.
O incômodo com essa lacuna de referências levou Lisiane Lemos, 31 anos, gerente de novos negócios no Google e uma das principais vozes sobre inovação e desigualdades na área corporativa, a abrir uma discussão nas redes sociais sobre o tema. “O medo não pode nos paralisar. Se funcionou assim até agora, não quer dizer que precise continuar para sempre. Se não mostrarmos que há mulheres negras preparadas, vão dizer sempre que não tem”, diz Lisiane. Em agosto, ao lado de um coletivo de mulheres e com o apoio da KMPG e da fundação WCD no Brasil, deu início ao projeto Conselheira 101, para fomentar a participação de mulheres em conselhos.
“É inaceitável que a questão de gênero não tenha sido resolvida, mas, ao mesmo tempo, não dá para só haver brancas na comunidade. Nós, conselheiros brancos, que temos o networking, precisamos contribuir”, diz Leila Loria, conselheira de administração e membro do WCD. “Quando conseguimos entrar, devemos fazer essas provocações”, complementa Ana Paula Pessoa, também membro da fundação.
Elas selecionaram 20 mulheres levando em consideração, além do critério racial, tempo de carreira de ao menos 15 anos, posição executiva e áreas de atuação que estão sendo muito requeridas para o posto. O objetivo não era treinar essas mulheres para o trabalho de conselheira, mas convidá-las a incluir isso em seus planos, investindo em relações com profissionais estratégicos, além de evidenciar a urgência para o debate.
“Pensamos pelo lado dos negócios, pelo plano de carreira delas. Posso dizer que só falta oportunidade”, diz Lisiane. Elas precisam estar na tomada de decisões porque têm não só currículos técnicos e vivências como mulheres negras mas também trajetórias muito singulares – riqueza requerida dos conselheiros de olho no futuro.
Quem são elas
Ao lado de Lisiane, na construção do Conselheira 101, estão outras executivas que entraram no afunilamento para se tornar potenciais conselheiras. Jandaraci Araújo, 47 anos, é membro do conselho da Junta Comercial do Estado de São Paulo e subsecretária de Empreendedorismo, Micro, Pequenas e Médias Empresas do Estado de São Paulo. Mas o currículo dela pode ser resumido de outra forma, o que dá sua real dimensão. “Ela é uma mulher que vendeu salgado na rua, senta no conselho de uma autarquia e é subsecretária de empreendedorismo do estado que mais empreende no Brasil”, diz Lisiane sobre a amiga.
Pela perspectiva de Jandaraci, é preciso observar como a diversidade está sendo endereçada a todos os tipos de organizações. “A maioria das empresas no Brasil é familiar – isto é, não tem capital aberto –, mas várias delas são gigantes e precisam inovar e captar investimento. Ter pessoas diferentes é importante para isso. Diversidade não pode ser uma anomalia”, afirma Jandaraci.
Por ser uma posição de grande responsabilidade – para ter uma ideia, muitos conselheiros contam até com seguro para cobrir os riscos de uma tomada de decisão cujas eventuais consequências recaiam sobre eles –, é comum escolherem profissionais conhecidos. Além das competências técnicas, o networking é obrigatório.
“Nós, mulheres negras, não conquistamos isso tão facilmente. Mas fornecemos aquilo de que eles precisam para lidar com as mudanças que vêm acontecendo muito rapidamente. Hoje, não é só uma questão de justiça social; nós temos uma barganha”, observa Elisangela Almeida, 44 anos, também fundadora do projeto. Sua trajetória inclui liderança em finanças e gestão de projetos de TI e transformação em multinacionais. Hoje, é controller na startup Solinftec, que atua em quatro países.
Em um polo profissional praticamente oposto, está Dilma Souza Campos, 47 anos, que começou a trajetória como dentista, passou pelas artes e enveredou pela carreira corporativa na área de publicidade e eventos. Em 2013, fundou a agência de live marketing Outra Praia e hoje também é conselheira da Associação de Marketing Promocional (Ampro), que influencia os rumos desse mercado.
A sensação de dever cumprido é saber que já foi capaz de mudar um pouco a cara do setor – não pode mais haver eleições em que não sejam indicados homens e mulheres nem júris de premiações que não tenham composição mista. “Decidir é saber que você pode provocar mudanças e alterar paradigmas. A pergunta que precisamos nos fazer é o que estamos dispostas a perder para ter um mundo mais igualitário. A começar por isso, mudam as regras e oportunidades são criadas”, afirma Dilma.
“A pergunta que precisamos nos fazer é o que estamos dispostas a perder para ter um mundo mais igualitário”
Dilma Souza Campos
Falar em legado é quase consequência da atuação dessas mulheres no alto comando. Afinal, a virada não acontecerá de uma única vez, mas o trabalho que for feito agora impulsionará as próximas gerações. “Eu quero ver pretos por todo lado nos níveis mais altos. Vivi ocasiões no passado em que pessoas que não me conheciam não me cumprimentavam, como se eu não importasse. Não podemos mais ser atípicas. Já me provei há muito tempo, mas parece que é preciso reforçar”, diz Mônica Marcondes, gerente-geral de participações em energia da Companhia Siderúrgica Nacional (CSN). Em um setor ocupado por homens brancos, ela viveu a inadequação desde o mestrado em engenharia elétrica na Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (USP) até o mercado de trabalho, mesmo como executiva.
Também há carreiras em que mulheres e negros ocupam grande parte dos menores cargos, mas permanecem alijados dos mais altos. É o que percebe Ana Tércia, 52 anos, presidente do Conselho Regional de Contabilidade do Rio Grande do Sul, primeira mulher no cargo em sete décadas da entidade. “Há muitas mulheres nas faculdades e empresas de contabilidade. Elas são maioria entre associados inclusive, mas há um estreitamento nas diretorias executivas (CFOs).”
Em grande medida devido ao histórico de maior empobrecimento da população negra, para várias delas a escolha de uma profissão passou por uma preocupação financeira de curto ou longo prazos. “Eu acabei indo para o caminho de ciências da computação porque era o que tinha próximo e de graça em uma faculdade técnica em Santos. Era início dos anos 1990 e não se sabia muito bem o que era estudar tecnologia”, diz Carla Moraes, 48 anos, apaixonada por matemática desde a infância.
Ela enveredou pelo mercado financeiro até chegar ao Itaú, onde é superintendente de engenharia de software. “Quando me tornei executiva e também entrei em mais discussões, percebi a responsabilidade de estar lá. Eu me posiciono sobre os temas de raça e de gênero porque é o certo a fazer”, afirma, contando que teve uma tomada de consciência sobre a própria condição ao longo dos anos. Para cada uma, isso vem em um determinado momento da vida e estágio da carreira.
Há oito anos, Valentine Giraud, 38, foi chamada para ser conselheira no Institute of Noetic Sciences, instituição americana dedicada à parapsicologia. Ela já possuía uma carreira consolidada, mas pouco convencional, no exterior em inovação e liderança criativa. O movimento demandava uma mulher mais jovem, com pensamentos alinhados à contemporaneidade. “Faz parte do tempo atual dispor de uma gestão movida por valores considerados femininos, mas que não são só das mulheres, como mais sensibilidade e intuição”, afirma.
Ao receber o convite para o Conselheira 101, ficou admirada pelo fato de a iniciativa ter partido de um grupo de mulheres negras. “Embora eu sempre tenha valorizado meus traços, como cabelo e nariz, vivi em ambientes muito embranquecidos e não carregava minha identidade porque minha pele é clara. Ao ser percebida por mulheres negras, isso fica muito evidente”, conta.
Essa identificação nunca vem tarde demais. Às vezes, ela já existe desde muito cedo, mas o seu potencial é notado posteriormente. Na casa de Andrea Cruz, 44 anos, em Salvador, ser conselheira estava na pauta, e esse era um destino que ela sabia poder alcançar. A mãe dela ocupara o posto em uma associação do Sistema S. Andrea manteve uma trajetória corporativa sólida em recursos humanos, com passagem pela Avon, até cumprir o plano de ter a própria consultoria – em 2012, abriu a Serh1. “Na época em que era executiva responsável até pela América Latina, não aproveitei o poder que tinha em mãos para endereçar diversidade. Entramos no modo automático em recrutamento. Agora, espero tornar esse fator básico para todos os planejamentos”, afirma.
Foi também de casa que veio a inspiração de vida de Roberta Anchieta, 43 anos. O pai, que morreu quando Roberta tinha 22 anos, era executivo, com graduações em física, engenharia elétrica e administração, além de mestrado e doutorado. “Eu tive alguns privilégios, pude estudar em ótimas escolas e fazer intercâmbio, mas, ao mesmo tempo, era ofendida nos espaços pela minha cor”, conta ela, que há 20 anos ingressou como trainee no Itaú, onde hoje é superintendente de administração fiduciária.
Diferentemente do que se poderia imaginar, a vantagem socioeconômica é incapaz de apagar outras marcas. “Até conseguirmos competir em igualdade, há uma série de testes pelos quais passamos para mostrar que estamos no mesmo nível”, diz ela, que agora incute essa percepção nos filhos, de 8 e 4 anos. Enquanto o pai dizia que ela teria desafios mais duros, ela procura falar também sobre a valorização da história que eles carregam.
As gerações mais jovens têm trazido isso consigo e esperam avançar a passos largos para um cenário mais justo. “Aproveitamos que esse debate está muito forte para abordar a questão. Hoje, eu me sinto confortável ao expor incômodos de representatividade, se necessário, e a ser como sou, usando turbante”, diz Suellen Rodrigues, 36 anos, gerente científica de doenças infecciosas e vacinas da farmacêutica Merck Sharp & Dohme (MSD), que se diz nerd por estudar ciências e políticas públicas. O fato de ela não ter a pele retinta também causava questionamentos a pares dela. “Antes, havia dúvidas sobre a minha identidade; diziam que eu não era negra”, observa.
“Até conseguirmos competir em igualdade, há uma série de testes que passamos para mostrar que estamos no mesmo nível”
Roberta Anchieta
Com o amadurecimento das discussões, deve caminhar a ampliação de oportunidades. Essa leva de executivas veio, de modo geral, de um período anterior às políticas de cotas, que contribuem para que a disputa por vagas nas universidades seja mais equânime. “Fiz o cursinho do núcleo de consciência negra da Universidade de São Paulo, mas não passei lá; então, fui para uma faculdade que poderia pagar. Depois de anos, falei sobre a minha profissão a convite de alunos da USP. Foi tão emocionante perceber como tudo pode mudar e espero que continue assim”, conta Viviane Moreira Elias, 40 anos, gerente sênior de resiliência corporativa na UnitedHealth Group no Brasil, controladora da Amil.
Ela explica que, nas decisões que tomou ao longo da vida e no trabalho, o fato de ser uma menina negra e viver em um bairro na periferia de São Paulo foi sempre determinante. “Aprendi sobre contingências, possibilidades para continuar mesmo com adversidades. Isso é útil para o meu trabalho quando calculo riscos”, conta.
Assim, as interseccionalidades se tornam potências. Ao falar da própria trajetória, Ana Fontes, 54 anos, diz com bom humor que é uma mistura de várias das características tidas como fora do padrão corporativo, sendo ela também criada em periferia e de origem nordestina. Nem todo mundo pode falar que conhece a multiplicidade da mulher brasileira como ela, fundadora da Rede Mulher Empreendedora, referência na capacitação dessas profissionais há dez anos. Antes disso, foi executiva da Volkswagen no Brasil. Atualmente, é conselheira do Instituto Avon.
Na percepção dela, o cenário no mundo corporativo não mudou tão profundamente durante esses anos em que esteve em outra frente, mas trabalhando ao lado de grandes empresas. “Como há poucas pessoas negras, frequentemente usam você como token, seja como símbolo de que a companhia é diversa, seja fazendo-a responsável por opinar sobre tudo o que é referente a mulheres e negros”, aponta.
Nesse sentido, para que se tornem efetivas as mudanças que têm sido exigidas das empresas para ampliar diversidade e inclusão nos quadros, é preciso estar disposta a praticar o objetivo no dia a dia. “Percebi que gosto de ser uma liderança não para ser exemplo, mas para motivar e formar uma equipe. É necessário empenho para descobrir capacidades de cada um”, diz Ianda Lopes, 45 anos, chefe jurídica da GE na América Latina. Essa empreitada exige o entendimento de que cada indivíduo possui forças distintas, especialmente neste momento de virada, em que se busca colaboradores menos formatados.
Para ir além das contratações, há de se criar a sensação de pertencimento. “Foi muito importante para o meu crescimento não me sentir só. Para tanto, frequentava coletivos e grupos de diversidade, onde podemos nos unir e nos entender”, diz Patricia Garrido, 48 anos, diretora de planejamento estratégico e trade marketing da Discovery, com passagens por empresas como Microsoft e Whirlpool, lugares em que isso é prática. Ter em quem se apoiar é fundamental.
Quando se bate na tecla de que é preciso ter mulheres negras líderes – com presença ainda mais forte em conselhos –, não é por um único motivo. A resposta, simples, é que não há justificativa para o contrário. E uma ótima notícia: existem muitas mulheres – além das que estão nestas páginas – que poderiam ser nossas futuras representantes nos negócios.
Nas fotos de Dilma, Jandaraci, Mônica e Rachel por Karla Brights:
Styling Neco Oblangata • Beleza Camila Anac • Assistente de Beleza Camila Canto Martinez • Assistentes de foto Bibi Caetano e Felipe Santos • Tratamento de imagens Eddie Mendes • Roupas, Roro Rewind; acessórios, acervo Oblangata. Rachel Maia usa vestido, Tufi Duek
Ouça o podcast de CLAUDIA: