É fato: estamos na era das dietas restritivas. As receitas com poucas calorias, livres de glúten e lactose ou à base de ingredientes funcionais tomaram de assalto os menus. A tabela de informação nutricional, obrigatória nas embalagens de alimentos e bebidas desde 2001, foi ampliada em 2005 pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) em função da “demanda crescente da sociedade”.
Muita gente encara o movimento como um modismo que vai fazer barulho até virar passado. Mas há quem veja um perigo maior no hábito de comer contabilizando nutrientes. “As pessoas se esquecem de que o ser humano se nutre de alimentos e sentimentos”, diz a nutricionista Sophie Deram, que estimula seus pacientes a fazer as pazes com a comida.
Ela e outras pessoas que vivem a cozinha intensamente contam aqui o que pensam da onda das restrições e revelam como as memórias e os afetos influenciam a vida e o trabalho delas.
Cozinha do fogo é lugar de afeto e segurança
Clarice Chwartzmann, criadora do projeto As Churrasqueiras
“As memórias da infância definiram minha relação com a comida. Meus pais amavam cozinhar e, em meu trabalho com o churrasco, reproduzo rituais que aprendi com meu pai. Quando se reaproximam da cozinha do fogo, as mulheres resgatam maneiras de compartilhar afeto. ”
Faço comida para demonstrar carinho
Ana Luiza Trajano, chef, dona do Instituto Brasil a Gosto e consultora de CLAUDIA
“Desde pequena, escolhi a cozinha para mostrar que gosto de alguém – noto que um relacionamento acabou quando perco a vontade de cozinhar para aquela pessoa. Em casa, a cozinha faz parte da rotina dos meus filhos. Priorizo alimentos frescos e saudáveis, mas sem radicalismos. A refeição tem que ser um momento de prazer.”
É preciso fazer as pazes com a comida
Sophie Deram, nutricionista especializada em comportamento alimentar
“Sou de família francesa e sempre enxergamos o comer como um ato de felicidade. Quando comecei a estudar nutrição e me especializei em obesidade infantil, entendi por que é tão difícil emagrecer: as pessoas sentem medo e culpa e acabam terceirizando a decisão do que comer. Só que esta é uma necessidade básica, e o peso do afeto é enorme.”
Racionalizar a comida é tirá-la da dimensão do afeto
Leila Kuczynski, psicóloga e chef, proprietária do restaurante Arabia, em São Paulo
“A comida marca as pessoas porque a primeira refeição sai do peito, vem da mãe, e isso não se apaga. Trabalho com uma cozinha étnica que traz a força da família. As pessoas vêm ao meu restaurante em busca dessas memórias de afeto. A medicalização da comida, além de triste, a coloca em outra dimensão. Você sai do universo do afeto para usar medida, cálculo, régua e compasso. Todas essas dietas restritivas são um modismo, que certamente vai passar.”
O carinho começa na elaboração do menu
Bettina Orrico, culinarista de CLAUDIA
“Quando cozinho para alguém querido, começo muito antes a pensar no cardápio, a escolher a decoração da mesa. Como fico feliz quando encontro um ingrediente especial! Cresci observando a cozinheira da família; amava revistas de receitas. Uma das lembranças mais antigas que tenho é do perfume maravilhoso de um fígado suíno grelhado no carvão. Outra recordação afetuosa é da minha mãe, que morreu muito cedo, entrando na cozinha para fazer doce. Não tive filhos, mas ponho essas emoções naquilo que preparo para os amigos.”
Doces são símbolos de celebração e felicidade
Danielle Noce, autora do blog I could kill for dessert e do livro Por uma vida mais doce
“Pessoas são um conjunto de habilidades, memórias e relações. Por isso, minhas lembranças influenciam diretamente meu trabalho. Sobremesas nos envolvem emocionalmente. Afinal, são o ponto alto daquele almoço de domingo, do casamento, da festa de aniversário. Elas nos ajudam a recordar esses momentos, mesmo muito tempo depois. O doce é um alimento de exceção, de celebração, na maioria das vezes ligado a conquistas e felicidade. Por isso, é um símbolo emocional para tanta gente.”
Comida é mais do que combustível
Michael Pollan, professor da Universidade de Berkeley, na Califórnia (EUA), e autor de Cozinhar: Uma História Natural da Transformação
“A comida, que já foi fruto de uma complexa transação entre pessoas e natureza, está sendo industrializada, transformada em um produto opaco que serve como combustível para o corpo. Ela é muito mais do que isso. É também um meio de viver em comunidade e com a família, uma comunhão com a natureza e uma expressão de identidade.
“O capitalismo promove uma ideia simplificada de comida, que poda todos esses ricos significados. Eles vêm também dos processos das preparações – do amor que o cozinheiro ou cozinheira demonstra por quem será alimentado. Se corporações cozinham em nosso lugar, como isso será possível? Comida pode ser remédio, mas não só para o corpo: também para a alma, para a família e para a comunidade.”
Um sabor pode desencadear viagens afetivas intensas
Roberta Sudbrack, chef de cozinha, proprietária da lanchonete Da Roberta, no Rio
“A verdadeira conexão entre cozinha e afeto está na memória. Uma forma, um modo de preparo, uma cor ou um aroma podem trazer lembranças fortes. Cozinhar, alimentar, saciar, restaurar são verbos profundos de se conjugar. Tudo se encontra num momento porque você lida com a emoção dos alimentos, de quem plantou, de quem colheu, de quem pescou, de quem comeu.
“Não há como fazer uma cozinha emocional sem se envolver intensamente com ela. E também não existe uma fórmula para garantir que o cliente perceba. Nem todo cozinheiro faz um comensal chorar. Mas, quando acontece, é mágico. Já vivi emoções fantásticas – e toda mudança a que me propus foi para levar essa sensação a um público maior. Entender a funcionalidade dos alimentos é inteligente, mas nada de radicalizar e esquecer que os alimentos podem e devem nos dar prazer.”
O gosto pela cozinha vem de dentro
Heloísa Bacellar, chef de cozinha, proprietária do restaurante Lá da Venda, em são paulo, e autora dos livros Cozinhando para amigos I e II (DBA)
“Vivo a relação entre comida e afeto desde que existo. Aprendi a cozinhar com minha avó e, até hoje, tenho o liquidificador onde fiz minha primeira maionese, aos 6 anos. Não tem só a ver com nutrição; é carinho. Podemos comer até comida de astronauta para ficar de pé. Mas, se você transforma a refeição em um momento gostoso e agradável, tanto melhor. Sei que, para muitas pessoas, o problema é sério – mas, na maioria das vezes, não. Minha filha sofre de intolerância a lactose de verdade. Sempre montei pratos coloridos para ela. Já servia alimentos funcionais sem ter bula.”