À frente de suas próprias marcas, estilistas negros buscam reconhecimento em sua ancestralidade para criar uma moda pessoal e rica em significado.
Meninos Rei
Envoltos em tecidos africanos, como Saint Louis e Dakar, os irmãos Céu e Júnior Rocha transformaram os olhares de admiração que recebiam por seus visuais em tesouro para quem busca autenticidade na moda. A ideia de fazer dos próprios looks uma marca, a Meninos Rei, veio do Júnior. Mas Céu não pensou duas vezes antes de abraçar a proposta do irmão.
“Nosso pai é desenhista técnico e na família tínhamos avó e tias que costuravam divinamente bem”, conta Júnior, que se emociona ao lembrar de uma colcha feita por uma tia com as sobras da produção deles. “Passa um filme na cabeça de toda a trajetória.”
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O reaproveitamento dos retalhos é uma preocupação dos estilistas, que destinam a matéria para três famílias de Salvador. “Elas conseguem fazer outros produtos, como acessórios, pano de prato, gerando autoestima e complemento na renda familiar. Isso deveria ser regra para todos os empreendedores”, considera Júnior.
Segundo os irmãos, o nome da marca é um anúncio da missão dela. “Queremos que as pessoas se sintam como realeza por meio do poder ancestral. A base é feita sempre de tecido africano, que possui diversos códigos”, aponta Céu, que assina os modelos. Agora, eles se preparam para a segunda participação na São Paulo Fashion Week (SPFW) – a primeira presencial.
Riddim
Até o pano de chão era ressignificado pelo olhar já apurado de Mônica Barboza na infância. “Desde pequena sempre fui muito conectada, cortava tecidos da minha mãe pra fazer roupa para a boneca”, diz a estilista e fundadora da Riddim, marca que desfila na Casa de Criadores desde o ano passado. Mas antes de chegar ao circuito da moda, um longo caminho de reconhecimento foi travado pela moradora do bairro de Perus, periferia de São Paulo.
“Quando somos pretos e periféricos, temos um pouco de distanciamento da realidade da moda. Acabei fazendo outras coisas antes. Minha mãe, que é diarista e criou os filhos sozinha, se preocupava com a inserção no mercado de trabalho”, diz Mônica, que foi tranquilizando a mãe ao fazer cursos em projetos sociais e, por fim, entrar na faculdade.
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“A gestação da marca foi durante o meu trabalho de conclusão de curso, quando questionei de que maneira poderia inserir a periferia na moda. Pela janela do meu quarto, encontrava inspiração com a movimentação do bairro. Hoje, consigo levar essa poesia à marca”, explica ela, que fez sua primeira coleção, em 2015, inspirada em trançados africanos.
De lá pra cá, a Riddim migrou para um formato mais comercial, mas sem perder a identidade. “Caminhamos por referências de street, só que acompanhada do glam, do brilho. O resultado é uma moda afrofuturista”, comenta a designer, que desenvolve todas as peças com uma equipe formada por profissionais negras e periféricas.
Mile Lab
A costura é um legado ancestral na família da Milena Nascimento, a mente por trás da Mile Lab. A ideia da marca surgiu em 2017, quando a jovem do Grajaú, periferia de São Paulo, trabalhou no seu primeiro evento de moda. “No começo, era uma necessidade pessoal. Eu desenhava desde os 8 anos e sempre tive o apoio dos meus pais. Mas, com o tempo, vi que a moda era uma necessidade coletiva”, diz a estilista, que estreou na SPFW em maio deste ano, com apenas 23 anos.
Quando Milena fala do coletivo, ela se refere às pessoas que dividem a mesma origem que a sua: a periferia. “Não somos uma coisa só. Meu ponto de partida para entender esse território foi o resgate ancestral. Antes de chegar, você precisa pedir licença para os que pisaram primeiro”, afirma. A designer entrega um resultado nada óbvio ao reimaginar a estética marginal. Na coleção Baobá, babados, texturas e cordas se encontram em peças versáteis.
Além da expectativa de atrair cada vez mais clientes para a marca, Milena planeja que a Mile Lab também atue na formação de profissionais de moda no Grajaú, focando na identidade brasileira, o que, com certeza, não exclui a periferia.
Femorais
Encontrar uma roupa para brilhar na noite paulistana virou uma missão para Felipe Morais e sua mãe, Luzinete. Desde os 14 anos, passar a tarde costurando ao lado dela era natural.
“Quando chegava nas festas, as pessoas me perguntavam de onde era o look e sempre me elogiavam. Comecei a produzir roupas para amigos e conhecidos, mas tudo de forma informal”, explica Felipe sobre a fase que não durou muito tempo.
O objetivo de cursar faculdade de moda exigiu a decisão de priorizar seu tempo e dinheiro, ocupando as horas que eram da costura. A família e os amigos garantiram a rede de apoio necessária para Felipe concretizar o sonho de viver de moda. “Comecei a desenhar minha coleção, a Acid, com dinheiro apenas para o tecido”, conta sobre a decisão que tomou após ficar desempregado em 2020, durante a pandemia.
Com o alcance das redes sociais, único meio para divulgar a coleção, a FeMorais Brand ganhou mais visibilidade e investimento. Em Orapa, coleção calcada no oversized com recortes inusitados e alfaiataria, o estilista atingiu seu grande desejo: “Quero que as pessoas se encontrem nas roupas”, declara.
Yebo
As possibilidades de profissões no futuro eram vastas no imaginário da estilista e fundadora da Yebo, Domenica Dias. Porém, desde a infância, a moda sempre teve um peso maior. “Sempre gostei de criar roupas na aula de arte e, em casa, lembro do meu pai atento à combinação de cores, ao tecido e caimento das peças. Ele tem uma preocupação além da estética. Me vejo nele em tudo isso”, fala sobre a influência do pai, o rapper Mano Brown.
A vontade de olhar o segmento com mais cuidado passou pelas festas que frequentava, no centro de São Paulo, e por artistas que não saíam do seu radar. “Frequentei espaços brancos por muito tempo, então referências negras me ajudaram no processo de conexão com a minha identidade e autoestima, criando também minhas particularidades”, fala Domenica, que agora ocupa um papel inspiracional.
A autenticidade também faz parte do DNA da Yebo, marca criada por ela, pela estilista Naiara Albuquerque e a diretora executiva Eliana Dias, mãe de Domenica, em 2020. Formada só por mulheres, a Yebo entrega “um streetwear de excelência, porque a modelagem ampla pode ter uma estética chique”, como explica a fundadora.
“O upcycling também estará na nossa próxima coleção por meio de parceria com artistas. A ideia é aumentar essas colaborações, aproximando artistas autônomos e independentes da marca”, diz Domenica, reforçando a conexão entre seus grandes interesses: moda e arte.
Ateliê Mão de Mãe
“A moda me escolheu.” Para Vinicius Santanna, essa é a explicação para o turbilhão de acontecimentos que transformaram não só a sua vida como a de sua família nos últimos meses. Pertencente ao grupo dos quase 15 milhões de brasileiros desempregados até o início deste ano, o soteropolitano conquistou uma nova ocupação profissional em parceria com sua mãe, a dona Luciene. Artesã desde os 14 anos, a matriarca transforma em arte, com as mãos, búzios, lã e tinta.
“Sem saber precificar, minha mãe sempre vendeu seus acessórios e itens de decoração por um valor baixo. A condição ficou ainda pior com o comércio fechado por causa da pandemia”, lembra Vinicius, que decidiu criar o Ateliê Mão de Mãe, administrado por ele, Luciene e o também diretor criativo Patrik Fortuna.
Aos poucos, a marca começou a atrair olhares, até que se tornou uma das etiquetas apadrinhadas pelo projeto Sankofa. A iniciativa, que dá suporte para marcas com estilistas negros que desfilam na SPFW, acelerou a criação da primeira coleção do ateliê, As Nuances da Terra Boa, uma ode à delicadeza da arte de fazer crochê.
“Hoje, temos um coletivo de mulheres que trabalham com a gente no modelo slow fashion. Queremos preservar essas peças exclusivas para respeitar a preciosidade do trabalho manual”, explica Vinicius, que vislumbra um caminho de aprendizado constante na moda.
Ellias Kaleb
Com um ano, Ellias Kaleb saiu de Rio Formoso, em Pernambuco, rumo a São Paulo com os pais. “Minha mãe nasceu em Serra Talhada e aprendeu a bordar na infância. Quando eu era pequeno, eu ficava olhando e, sem perceber, construindo referências para o meu trabalho”, lembra o estilista, que possui uma marca com o seu nome.
A habilidade manual, para ele, é inerente à sua existência. “Não fiz faculdade porque não tinha dinheiro. Aprendi a costurar e comecei a fazer cursos. Foi quando me encontrei e consegui driblar tabus que podavam sua existência”, conta Ellias. Para fechar o mês, o designer conciliou a produção das suas criações com o trabalho em diversas fábricas por anos.
“Mas meu sonho sempre foi de me expressar artisticamente na minha própria marca, algo que começou a se tornar realidade há oito anos. Porém, a estrutura do ateliê só ganhou forma há três”, explica Ellias, que faz parte do line-up da Casa de Criadores.
O evento, que costuma apresentar grandes promessas para o mercado, transformou a visibilidade da marca. “Os artistas, principalmente, começaram a captar a nossa essência. As peças são únicas e espero cada vez mais tornar essa produção próxima dos clientes, construindo projetos de forma realmente participativa”, destaca.