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“Quem não aprende a rir dos erros se torna o próprio carrasco”

O cenário que faz Augusto Cury feliz: a fazenda onde criou sua obra, estudou Jesus e escreveu o Vendedor de Sonhos, que estreia no cinema neste mês

Por Patrícia Zaidan Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 19 dez 2016, 09h00 - Publicado em 19 dez 2016, 09h00
 (Julia Rodrigues/CLAUDIA)
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A 3 metros do chão, na torre circular envidraçada que permite olhar o verde, os sabiás e, às vezes, um simpático bugio vagando sem destino, o psiquiatra Augusto Jorge Cury, 58 anos, digitou as páginas iniciais de O Vendedor de Sonhos. Era 2006. A lembrança que o movia: o dramático acidente de carro que matara os dois filhos e a mulher de seu irmão caçula, quatro anos antes. Embora se considere um escritor de criação compulsiva, a calma pautou esse trabalho. “Meus sobrinhos eram como filhos para mim”, diz. “Elaborar o episódio soou como algo que eu já havia escrito: ‘Não há céu sem tempestades nem caminhos sem acidentes. Na vida de ninguém‘.” Perdas na família são o ingrediente fundamental desse romance, que saiu em 2008, já vendeu 2 milhões de exemplares e, no dia 8 deste mês, estreará em 500 salas de cinema do país, com direção de Jayme Monjardim. É o primeiro livro de Cury a virar filme. O autor está ansioso para ver a reação da plateia à história de um famoso psicólogo (Dan Stulbach) à beira do suicídio, que, no alto do 21º andar, se surpreende com o conselho de um mendigo (César Troncoso): “Seja lá o que você pretende encontrar embaixo, dê uma chance às dúvidas que estão surgindo aqui em cima”. Cury enxerga na cena a metáfora do ser humano culto, no topo, que valoriza o trivial e mantém uma relação ruim com ele mesmo e a família. “Quando se dá conta de que esqueceu o essencial, desiste de viver”, explica, abrindo a porteira da fazenda onde concebeu essa e a maior parte das suas 47 obras. Publicado em 70 países, Cury contabiliza 28 milhões de exemplares vendidos só no Brasil. O Instituto Pró-Livro divulgou em maio passado uma pesquisa encomendada ao Ibope Inteligência. Cury lidera na resposta a: “Qual é o autor do último livro lido?”.

O escritor viveu 25 anos nessa terra vermelha, florida, a 424 quilômetros da capital paulista. “É a minha floresta. O retorno para mim”, afirma. A propriedade fica em Colina (SP), onde nasceu. De manhã, antes de chegar ali, ele mostrou os lugares que lhe são caros desde a infância. “Colina é a capital nacional do cavalo, industrializa suco de laranja, faz o melhor sorvete, o Ice Bom, e tem cheiro de gente”, descreve. Hoje são 18 311 habitantes; na meninice dele, eram 10 mil. Não havia livrarias, e ele nem desejava ser escritor. Aluno disperso, mas querido na escola pública Coronel Venâncio Dias, preferia nadar e pescar na Fazenda do Governo, local de pesquisas agropecuárias. Quando adolescente, andava a pé com amigos até Monte Azul Paulista, a 23 quilômetros dali. “Íamos ouvindo o tilintar das folhas”, conta, rindo. Não se considerava “nada normal”. Ao ver o trem seguir, ficava imaginando quem era o maquinista: “O que pensava e temia, que dores havia sofrido? Em pensamento, eu repetia as perguntas observando uma mulher sombria, um bêbado, um cidadão falando só”. As indagações o levaram a rascunhar uma teoria sobre o funcionamento da mente, tornado caldo para o primeiro livro, Inteligência Multifocal, de 1999.

“Quem não aprende a se abraçar, a escrever sobre os dias tristes, a dar risada dos seus erros e da sua estupidez se torna carrasco de si mesmo”

Augusto Cury
augusto cury
(Julia Rodrigues/CLAUDIA)

Rejeitado pelas editoras

Não foi simples publicá-lo: “Por anos, fui rejeitado por dezenas de editoras”. Convenceu a Cultrix, onde o ajudaram a cortar o material de 3 mil para 400 páginas. Ficou feliz. “E triste, porque ninguém entendeu nada, de tão complexo.” Então, começou a criar metáforas, expressões fáceis e siglas, como GEEI (gasto de energia emocional inútil), e SPA (síndrome do pensamento acelerado, nome novo dado à velha ansiedade). Acertou. O Homem Mais Inteligente da História (Sextante) figura no primeiro lugar da lista dos mais vendidos de ficção desde o lançamento, em outubro passado. Apesar de rechaçar o rótulo de autoajuda – “O que escrevo é de aplicação psicológica” –, não renega Ansiedade, há quase 150 semanas no rol dos mais comprados do gênero.

 

O motorista do médico para no número 55 da Rua Tiradentes, no centro de Colina, sede do cartório. Ali Cury viveu com os pais e cinco irmãos. “Era uma casinha de 50 metros quadrados, um único quarto para todos, um quintal, onde plantei feijão.” Das memórias, puxa mais esta: “No dia em que mamãe fazia bolo, a criançada ficava em volta esperando esfriar”. O pai, Salomão, 81 anos, comerciário, descendente de libaneses, entrou na faculdade de direito depois de ter os filhos. A mãe, Ana, 82, de origem judaica com sangue italiano e espanhol, separava grãos de café na zona rural. “Herdei dela a delicadeza para a minúcia. Muito sensível, mamãe se deprimia com facilidade.” Ele também mergulhou no escuro enquanto cursava medicina em São José do Rio Preto (SP). “Não procurei um médico, me virei sozinho com medo do estigma da doença mental”, conta. Foram dias horríveis, com pensamentos intrusivos, sono conturbado e falta de sentido existencial, agravada na relação com os pacientes que estudava. “Era difícil compreender a morte, o câncer, as dores que os doentes choravam sem que ninguém se interessasse por elas.”

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Leia também: 5 perguntas para Augusto Cury

Ele anotava o que sentia e intuía em pedaços de papel, que colecionava aos maços. A dermatologista Suleima, sua mulher, pôs fim ao acervo durante uma faxina. Cury tinha 25 anos e ela 21 quando se casaram. “Éramos dois duros rodando no nosso Mercedes – um ônibus urbano.” Na luta pela própria sanidade, criou técnicas que adotou no tratamento de neuróticos e psicóticos ao longo da carreira, iniciada na capital paulista. Para correr atrás do sonho, trocou São Paulo pelo interior: “Precisava ter tempo para minha teoria”.

Se não estava atendendo no consultório que montou na fazenda, escrevia. Um dia, Suleima buzinou sem parar tentando tirar o marido do computador para irem, atrasados, a uma festa. “Calma, estou tendo uma ideia. Não posso parar sem concluir”, justificou ele. Suas três filhas esperavam no carro. A mais velha, Camila (então com 10 anos), perguntou: “Mãe, quando papai acaba esse livro?”. Suleima, numa das raras vezes em que perdeu a paciência, respondeu: “Não vai acabar nunca. No dia em que isso acontecer, ele morre”. Aos 29 anos, Camila lhe deu um neto, Augusto, 11 meses. “Ele é o único capaz de me tirar do prumo”, revela o escritor. “Sou louco por esse garoto.” Camila e o marido, Bruno Oliveira, são vizinhos de Cury, que se mudou da fazenda para um condomínio fechado em Ribeirão Preto (SP). O escritor deve construir duas casas para as filhas Carolina, 23, e Cláudia, 22, permanecerem na área, conhecida como Vila Cury, quando se casarem. Oliveira preside o grupo educacional do psiquiatra, que mantém a Escola da Inteligência, programa vendido a instituições de ensino para ajudar crianças a lidar com as próprias emoções; a franquia Menthes, de curso para adultos; e os projetos filantrópicos. Em breve, na fazenda funcionará um hotel para dependentes de drogas, que em três meses farão reabilitação sob o Freemind, método de Cury. Os negócios ligados a direitos autorais e conferências são administrados pelo escritor. As filhas mais velhas, psicólogas, dão palestras sobre as teorias do pai. A caçula, agrônoma, tem olhar especial para o bosque de mognos africanos, na entrada da fazenda, e as parreiras que vicejam mais adiante. Na outra propriedade, no Prata (MG), há mogno, seringueira e uma mata sendo replantada.

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(Julia Rodrigues/CLAUDIA)

O sábado estava quente e as 40 ovelhas se alvoroçaram no curral, como se notassem a aproximação do dono. Cury costumava dar mamadeira às pequenas. Já faz 15 anos, sumiram tamanduás e lagartos teiús. A invasão da cana-de-açúcar no entorno acabou com o hábitat deles. Também não se veem mais cobras. Um dia, entrou no consultório uma pequena jararaca: “O paciente ficou em pânico. Expliquei: ‘Essa cobra só machuca se alguém pisar nela. As piores estão na cidade. Apenas o ser humano é capaz de maquinar o mal e injetar seu veneno em inocentes'”. Basta dizer uma expressão de efeito, que soa bem, para surgir o gancho de um novo livro. Em O Vendedor de Sonhos foi parar a frase: “A primeira pessoa a se beneficiar do perdão é a que perdoa, não a perdoada“. Quase tudo que cria vira febre no Facebook e no Twitter pelas mãos dos leitores.

Cury sofreu ao colaborar com o roteiro do filme. O texto é de LG Baião, com participação do produtor Tubaldini Jr., o Tuba. Foram quatro anos e sete tratamentos até a versão final. “Muitas vezes insisti com Jayme e Tuba para que colocassem algo.” Queria, por exemplo, que o diálogo inicial entre o mendigo e o psicólogo tivesse 15 minutos. “Entraram seis, o que já é muito”, diz o diretor. Cury gosta do tempo reflexivo de …E O Vento Levou, que tem quatro horas. “Cinema hoje é cena curta. Estou aprendendo.”

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A amizade nasceu com Tuba e se estendeu a Monjardim. Os três ficaram íntimos. “Já tinha lido Cury. Ao conhecê-lo, achei ainda mais carismático”, recorda o produtor. Falavam do roteiro andando na fazenda, seguidos pelos cães. “Cury quase não bebe, mas come bem. Em um dia, nos deliciávamos com um franguinho caipira ensopado; em outro, com peixe”, revela. “Escolhi Jayme pela sintonia com o tema.” Antes da filmagem, o diretor levou o autor para palestrar com o elenco: “Esse é um filme de palavras. Elas prendem mais que as imagens, têm apelo emocional. Só Cury para explicar isso aos atores”, justifica Monjardim. O longa custou 10 milhões de reais e será distribuído pela Warner Bros. e Fox Film, com esquema de grandes produções americanas. Por sugestão de Tuba, escritor e diretor foram se inspirar em Israel e ver possíveis locações para a futura produção, O Homem Mais Inteligente da História, que custará quase o triplo. “Li o livro ainda nos originais”, diz Monjardim. “O texto de Augusto é capaz de mudar a vida das pessoas.”

“Ninguém tratou com tanta dignidade um traidor, como fez Jesus. Ele também tinha medo de perder um amigo e ser traído. Todos temos. É impressionante como deu tudo aos que nada possuíam. E escreveu poesia no caos”

Augusto Cury
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(Julia Rodrigues/CLAUDIA)

 

A relação com Jesus

O que ele põe no papel transpira a experiência de médico, a leitura de filosofia, a escuta de si mesmo e uma vivência que não menciona em público. Autointitulado “cristão sem fronteiras”, com trânsito entre muçulmanos, budistas, católicos, protestantes e espíritas, talvez não queira seu nome dogmaticamente atrelado a uma vertente. Fato é que, nos anos 1970, Cury aderiu a um grupo evangélico. A conversão a Jesus se dera aos 17 anos, em Ribeirão Preto, entre jovens que se espelhavam na igreja primitiva deixada pelo Mestre nas mãos do apóstolo Pedro. Viviam em desapego material, liam a Bíblia na rua, faziam música e teatro sobre o Novo Testamento. “Ali comecei a perceber que Deus é real, o que ampliou meus horizontes”, afirma. Dos 30 aos 40, confrontou Deus criticamente e se tornou “o maior ateu que já pisou na Terra”, como diz. O período coincide com sua imersão na ciência.

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Já havia se religado à espiritualidade quando, para o último livro, esquadrinhou a mente do Nazareno. “Eu me questionei ao máximo, varri a carga que trazia dos meus antepassados católicos e judeus e daquela experiência da juventude”, explica. “Entendia Jesus como fruto de um cérebro apaixonado pela vida, que resistiu à solidão de um túmulo, na tentativa de superar o medo da morte e a angústia da inexistência.” Para estabelecer comparações, Cury estudou a mente de Freud e de Einstein e leu várias versões, até as apócrifas, da biografia de Jesus. “Aí foi o ribombar da posição acadêmica.” Descobriu, perplexo, que Jesus repetiu 66 vezes: “Sou filho da humanidade, sou filho do homem”. Dava a resposta sempre que perguntavam quem ele era. “É como se exigisse: ‘Não me rotulem, não me separem do homem comum, das prostitutas, dos leprosos, dos sem religião. Vim porque sou apaixonado pela humanidade’.” O escritor concluiu que Jesus foi o maior revolucionário, o maior socialista, o grande humanista. “Ninguém tratou com tanta dignidade um traidor. Ele também tinha medo de perder um amigo e ser traído. Todos temos. É impressionante como deu tudo aos que nada possuíam. E escreveu poesia no caos.”

O resultado: alguns heroicos personagens de Cury têm os insights, a postura, a linguagem e até uma certa melancolia parecida com a de Jesus. A essa altura, Suleima, delicadamente, interrompeu a conversa. “O almoço está pronto, esperando vocês.” E, então, o cheiro gostoso do frango à moda da roça, de que falara Tuba, passou a dominar o ambiente.

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