Em um clima semelhante ao que vivemos nas últimas semanas, há 42 anos, nascia o Movimento Negro Unificado contra Discriminação e o Racismo (MNUCDR), conhecido atualmente apenas como Movimento Negro Unificado, o MNU. Três casos seguidos de racismo em plena ditadura militar foram responsáveis pelo surgimento da organização. O primeiro foi a prisão de um homem negro acusado de roubar frutas na feira. Na cadeia, Robson Silveira foi torturado e morte. O segundo motivo ocorreu após quatro atletas negros do clube de Regatas Tietê serem impedidos de entrarem na piscina do local. Por fim, a morte do operário Nilton Lourenço no bairro da Lapa, em São Paulo, vítima de violência militar.
A folha de papel sulfite abrigava o plano de ação do movimento datilografado, reivindicando os direitos da população negra no âmbito da segurança, participação política, acesso à saúde, educação e cultura. Os desejos urgentes de sobrevivência para esse grupo étnico foram desenhados por Milton Barbosa, José Adão, Lélia Gonzalez, Luiza Barros, entre outros articuladores do movimento, que lançaram o manifesto no dia 7 de julho de 1978 na escadaria do Theatro Municipal, em reunião histórica. As demandas serviram de base para as necessidades definidas pelo movimento negro na Assembleia Constituinte de 1988, que resultou na Constituição Cidadã.
No mesmo em período Regina Lucia dos Santos, coordenadora do MNU em São Paulo, começava a se envolver com sua primeira causa. “As escolas na ditadura foram proibidas de ter grêmio, biblioteca com acesso a livros e laboratórios. E a nossa luta era para termos o direito de nos organizarmos como alunos para garantir melhores condições”, explica a ativista, que seguiu em pautas políticas em grupo estudantis, de mulheres e sindicais. “A militância me deu essa noção de que a educação me daria mobilidade social”, explica.
Produto de escola pública, a leitura e os estudos foram sua fonte de autoestima. “Éramos em seis mulheres na minha família. As pessoas de fora me consideravam uma das mais feias, com a pele mais escura, que para o racista é mais um reforço para ofender. O meu caminho era ser inteligente e estudar”, comenta a geografa formada na Universidade de São Paulo (USP). Em 1980, quando começou a graduação, viu como espaço acadêmico, por mais que contemplasse boa parte da considerada elite intelectual, era hostil para pessoas negras. “Ouvi de um professor que eu era muito boa aluna, mas que aquele espaço não era pra mim”, relembra.
Desiludida com a militância e com o sentimento que qualquer mudança em estruturas de poder e opressão era utópicas, em 1996, Regina passa por um processo interno de entendimento ao ser convidada por um dos fundadores, Milton Barbosa, para integrar o MNU. “Isso me mudou como pessoa, porque achava que tinha consciência negra e política apurada. Só que aprofundando os estudos e trocando com os outros integrantes, percebi que tive uma formação racista. Começa aí o meu processo de construção e reconstrução. Isso me muda do ponto de vista intelectual e pessoal”.
O mascaramento do racismo no Brasil é tão perverso que uma parte da população negra não reconhece que naquele assassinato o que contou foi o componente racial, não relaciona sua condição de vida com o racismo existente no país.
Regina dos Santos
Com ajuda de voluntários, que atuam em grupos estaduais e municipais, nesses 42 anos, o MNU tem um papel educativo e de amparo às demandas raciais. Entre as ações, há palestras em escolas, universidades, grupos de moradores e coletivos periféricos, apuração de denúncias de racismo e articulações com outras iniciativas. “Fazemos um resgate da memória da cultura negra e participação dos afrodescendentes na construção do Brasil e do mundo. Para mim, esse é o papel mais importante desenvolvido pelo MNU”. Inclusive, uma das pautas mais defendias pelo movimento foi a inserção de estudos étnico raciais nas escolas, gerando em 2003 a Lei 10 639, que estabelece a obrigatoriedade do ensino de história e cultura afro-brasileira nos ensinos fundamental e médio.
42 anos depois
Infelizmente, desde sua criação, as pautas urgentes do MNU continuam sendo as mesmas, segundo Regina. Assim como Robson e Nilton foram algumas das vidas negras encerradas no ano de 78, em 2020, temos João Pedro Mattos e Guilherme da Silva Guedes também perdendo o direito de viver por conta de violência policial como outros jovens negros. Se há 42 anos, o contexto histórico era a ditadura militar, hoje enfrentamos uma pandemia sem precedentes, que agrava ainda mais a precariedade de afrodescendentes no Brasil. Nesta quinta-feira (17), a pesquisa As Faces do Racismo, do Instituto Locomotiva, encomendada pela Central Única das Favelas (CUFA) mostra que 94% dos entrevistados entendem que negros têm mais chances de serem violentados ou mortos pela polícia, enquanto 91% acham que uma pessoa branca tem mais chances de conseguir emprego do que uma pessoa preta. O resultado ainda revela que 4 a cada 10 negros brasileiros não tiveram dinheiro suficiente para comprar comida.
Para Regina, os avanços existentes são resultados da organização do movimento negro brasileiro como um todo. “O trabalho é continuo, mas políticas públicas eficazes precisam ser implementadas e abraçadas pelos representantes públicos”. Sobre relações que começaram a ser levantadas a partir das manifestações nos EUA contra o racismo após a morte de George Floyd por um policial branco, a ativista declara: “é de uma crueldade comparar articulações do Brasil com os EUA. Lá, assim como na África do Sul, a segregação racial fez com que o negro reconhecesse quem era o seu inimigo. Aqui, com uma segregação dissimulada, o mito da democracia racial e a miscigenação, uma parte da população negra não se reconhece como tal. Somando com uma educação pública precária e uma mídia ainda conivente com esse sistema racista, a comparação é terrível e diminui a história de resistência no brasil. Não é que a gente não resiste, não luta, não denuncia e não organiza, é que isso não é notícia”, considera.