Na última terça-feira (30), o PL 490, conhecido como novo Marco Temporal para a demarcação de terras indígenas, foi aprovado no plenário da Câmara dos Deputados. O projeto, que estava em tramitação há 16 anos, obteve 283 votos favoráveis contra 155 e apenas uma abstenção. A articulação da ministra dos Povos Indígenas e da bancada do cocar não conteve os esforços da bancada ruralista para a aprovação da matéria, que agora segue para o Senado.
O que é o novo Marco Temporal para a demarcação de terras indígenas
O Marco Temporal defende que a demarcação de terras pode acontecer apenas quando há comprovação de que os indígenas estavam ocupando o espaço requerido em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição, em caráter permanente. A estimativa é que 303 pedidos sejam afetados pela alteração, caso sancionada, impactando 197 mil indígenas.
Embora a matéria esteja em tramitação na Câmera desde 2007, só teve sua aceleração depois da aprovação de um requerimento de urgência em 24 de maio deste ano. O objetivo, para os críticos, seria influenciar o Supremo Tribunal Federal (STF), que volta a analisar no próximo 7 de julho um caso associado ao Marco Temporal.
A Constituição Federal prevê direito aos indígenas: “são reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.” Mas não há menção a qualquer data como no Marco Temporal.
Argumentos contrários ao PL 490
Quem discorda do projeto acredita que a existência do marco seja uma ameaça para a homologação dessas áreas, pois, com a aplicação dele, terras em que os indígenas não conseguem comprovar a ocupação desde outubro de 1988 poderiam ser anuladas, segundo Juliana de Paula, advogada do Instituto Socioambiental.
“Além disso, os indígenas que não estavam em suas terras na promulgação da Constituição geralmente passavam por expulsões forçadas. Em alguns casos, eles só conseguiram retornar anos depois. Os Kayabi, por exemplo, foram retirados da terra pela Força Aérea Brasileira em plena ditadura militar e ficaram impedidos de sair do Parque Indígena do Xingu por muitos anos”, explica a especialista.
“O PL 490 ignora violações de direitos históricos dos povos indígenas. A inconstitucionalidade da proposta, a falta de consulta e consentimento prévio e informado dos povos indígenas e os riscos à proteção ambiental e às mudanças climáticas são preocupações centrais”, diz a ativista Shirley Krenak.
“Exigir que apresentem provas sobre a permanência nas terras, mais de 30 anos depois, muitas vezes é difícil até mesmo para os povos que estavam nas terras. Na data, inclusive, essa prova sequer era exigida. Por isso, o marco temporal não é um ‘critério objetivo’ para as demarcações, mas sim uma forma de tentar inviabilizar os direitos à terra dos povos indígenas”, completa Juliana.
A preservação ambiental faz parte do tema: nos últimos 30 anos, as terras demarcadas perderam apenas 1% de sua área de vegetação nativa, enquanto nas áreas privadas a perda foi de 20,6%, segundo dados do Mapa Biomas.
“As terras indígenas são os espaços mais ambientalmente conservados do país, mais do que as unidades de conservação. Admitir que a demarcação possa ser anulada com base no marco temporal permitirá que essas áreas possam ser desmatadas, e isso tem um impacto enorme para conservação da Amazônia, por exemplo”, diz Juliana.
A ministra do Meio Ambiente e Mudança no Clima, Marina Silva, e Sônia Guajajara, Ministra dos Povos Indígenas, demonstraram-se contrárias ao PL, e deputados da base do governo discursaram sobre os impactos à defesa climática que o projeto pode causar em longo prazo.
Sâmia Bomfim (PSOL-SP), inclusive, disse: “Nós vivemos uma emergência climática, e são os povos indígenas os maiores defensores do meio ambiente. É esse o objetivo daqueles que aprovaram no dia de hoje a absurda tese do marco temporal, porque sabem que são os povos indígenas os maiores obstáculos para aqueles que destroem os nossos biomas, que destroem o nosso ecossistema.”
O que diz a Defensoria
A Defensoria Pública da União (DPU) é contrária ao Marco Temporal para a demarcação de terras indígenas, e Fernando Mauro Junior, defensor público-geral federal em exercício, enviou a recomendação ao presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL). Para ele, a Constituição não pode ser utilizada como referência para a ocupação indígena, pois esta última tem parâmetros diferentes dos requisitos da posse do direito civil.
“O que se sabe é que o território – quando transformado em terra – é o espaço físico necessário para que determinada sociedade indígena desenvolva suas relações sociais, políticas e econômicas, segundo suas próprias bases culturais. É o elo subjetivo dos povos indígenas com seu território tradicional que permite serem quem eles são e, dessa feita, o espaço tem verdadeiro valor para assegurar a sobrevivência física e cultural, sendo por isso de vital importância para a execução dos seus direitos fundamentais”, ressalta o documento.
Argumentos favoráveis ao PL 490
O ministro Carlos Fávaro, da Agricultura, defendeu a aprovação da matéria em entrevista à imprensa, e alguns parlamentares rebatem críticas ao texto: “Utilizam os povos originários para fazer politicagem, e isso não dá para admitir. O povo do Amazonas já está de saco cheio de tanta politicagem com os nossos povos originários”, disse o deputado Capitão Alberto Neto (PL-AM).
Kim Kataguiri (União-SP) não acredita na inconstitucionalidade do projeto. “Se dizem que o projeto é inconstitucional, precisam questionar a decisão do Supremo Tribunal Federal, porque o projeto coloca na Lei o entendimento atual do Supremo Tribunal Federal”, afirmou.
Quando começou?
O PL 490 tem início em 2007, com o intuito de transferir a responsabilidade de demarcar terras indígenas do poder Executivo para o Legislativo. De lá para cá, recebeu diversas alterações, com mais de 10 apensados e de um texto substitutivo do deputado Arthur Oliveira Maia, relator da matéria.
Em 2009, com a decisão do STF da permanência do direito de indígenas a Terra Indígena Raposa Serra do Sol, alegando que eles ocupavam a região quando foi promulgada a Constituição, criou-se um precedente para a argumentação de que os indígenas não poderiam reivindicar como suas as terras aquelas que não estivessem ocupando em 1988.
Com a Advocacia Geral da União (AGU) emitindo um parecer de que seria pertinente a tese do marco temporal, em 2017, muitos processos de demarcação de terra ficaram parados.