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Canabidiol e o uso medicinal no combate da endometriose

O canabidiol, uma das substâncias obtidas a partir da maconha, vem sendo cada vez mais estudado no tratamento de diferentes doenças, como a endometriose

Por Sílvia Lisboa e Maurício Brum Colaboraram; Caroline Guarnieri e Mariana Alves
Atualizado em 31 jan 2022, 15h33 - Publicado em 31 jan 2022, 10h00
Maconha
Mesmo com venda permitida no Brasil há dois anos, preconceito e preço alto ainda dificultam o acesso ao medicamento  (|Divulgação/Divulgação)
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Foram seis anos de dor abdominal intensa, náusea, vômitos e outras complicações gastrointestinais até Natália Candiago, 23 anos, encontrar alívio no óleo de canabidiol, um dos mais promissores componentes da maconha conhecido pela sigla CBD. A estudante de medicina de Caxias do Sul, na Serra Gaúcha, passou por dez médicos até identificar que a causa das dores era a endometriose, doença na qual ocorre um depósito de células do endométrio, tecido que reveste a parte interna do útero, do lado de fora do órgão.

O diagnóstico não atenuou seus desconfortos. Hoje, há apenas dois tipos de tratamentos para a doença que afeta mais de 7 milhões de mulheres no Brasil: o uso de pílulas anticoncepcionais, que bloqueiam a produção de estrogênio — hormônio que alimenta essas células que produzem as substâncias pró-inflamatórias e doloridas — ou uma cirurgia para remoção dessas células.

Veja também: Tensão entre Anvisa e Abrace ameaça famílias dependentes do Canabidiol

Ambas, porém, não são garantia de cura. Natália usou a pílula de progesterona para inibir o ciclo menstrual e controlar os sintomas, mas não adiantou. “A medicação simula uma menopausa, então eu sentia muito fogacho (ondas de calor intenso pelo corpo). Acordava de madrugada com sensação de sufocamento”, desabafa.

Desesperada, a estudante partiu para o óleo de canabidiol com aval do seu médico. Natália compra o óleo da Associação de Apoio à Pesquisa e Pacientes de Cannabis Medicinal (Apepi). Cada frasco de 30ml custa 170 reais e dura até cerca de dois meses. Há meio ano, ela toma 20 gotas por dia.

“Foi um combo de hábitos mais saudáveis, como alimentação e exercícios, e o uso do óleo. Isso me deu uma qualidade de vida muito superior à que eu tinha antes, sem dores e outros sintomas”, afirma. A substância age tanto como um analgésico quanto como um neuromodulador ou anti-inflamatório.

“Daí advém seu enorme potencial para tratar a endometriose que está associada com transtornos de humor”, explica o médico Omero Benedicto Poli Neto, professor USP de Ribeirão Preto, uma das universidades mais profícuas em estudos da cannabis medicinal. “O CBD me ajuda muito com a ansiedade e a saúde mental, em geral. Não tive mais episódios depressivos”, confirma Natália.

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A Anvisa retirou a proibição ao uso do óleo em 2015 e liberou a venda em farmácia de produtos importados quatro anos depois. Com essas flexibilizações recentes, o canabidiol se consolidou como uma das mais promissoras frentes no tratamento da endometriose e de outras doenças com alta prevalência entre as mulheres. Pelo menos dois estudos testarão a substância em 2022. Um deles ocorrerá na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), capitaneado pelo ginecologista Eduardo Schor.

Será o primeiro estudo clínico randomizado sobre a eficácia do tratamento da endometriose com o óleo de canabidiol. A ideia é avaliar a melhora dos desconfortos em 30 pacientes – já se sabe que o CBD atua na transmissão nervosa, um dos principais mecanismos de dor. “Temos uma boa expectativa de alcançar o objetivo, mas este estudo também terá a função de desmistificar o canabidiol”, reforça Eduardo.

O segundo estudo será liderado pelo professor Omero e ainda aguarda liberação do financiamento. “Nosso objetivo é avaliar a dose segura e adequada do canabidiol como adjuvante ou para aquelas pacientes que não tiveram sucesso com a cirurgia ou com os anticoncepcionais”, detalha Omero, que também é vice-coordenador do Programa de Pós-Graduação em Ginecologia e Obstetrícia da FMRP-USP.

A empresa GreenCare, que oferece produtos derivados da cannabis para compra e importação, firmou parceria com várias universidades do país, dentre elas a Unifesp, e vai investir 15 milhões de reais em pesquisas com doenças diversas, incluindo a endometriose. Outros já aprovados serão desenvolvidos na USP, para a doença de Parkinson, e na Universidade Federal da Paraíba, em Rio Grande do Norte, no tratamento do transtorno do estresse pós-traumático e obsessivo-compulsivo.

“Só com pesquisas sérias que teremos diretrizes precisas de uso do CDB”, Omero Poli Neto, médico e professor da USP de Ribeirão Preto.

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Maconha, mas sem barato

No Brasil, o que conhecemos por “maconha medicinal” normalmente é um conjunto de cepas da cannabis com alto índice de CBD e uma concentração de tetrahidrocanabinol, o THC, a parte da planta de causa o “barato” da substância, de até 0,2%. Se o THC passa disso, seus
efeitos se aproximam do uso de forma recreativa – e, neste caso, a Anvisa só autoriza para pacientes terminais.

“A planta possui mais de 120 componentes, os chamados fitocanabinoides, que se fortalecem e criam um grande potencial fitoterápico”, esclarece a médica Maria Teresa Jacob, especializada em endocanabinologia e membro da Sociedade Brasileira para Estudo da Dor (SBED).

O potencial medicinal que age no controle da dor vem majoritariamente do CBD, mas outros componentes estão em estudo para tratar uma variedade de doenças como diabetes, glaucoma, Parkinson e Alzheimer. Nos últimos anos, o CBD vem sendo muito usado para combater síndromes raras que causam crises convulsivas, principalmente em crianças. A luta das famílias brasileiras pelo óleo ajudou a introduzir, fomentar as pesquisas e sua regulamentação no país.

Maria Teresa explica que os derivados da maconha no corpo funcionam como o encaixe de peças de um quebra-cabeça. “Todos os nossos órgãos e tecidos possuem um sistema endocanabinoide”. Esse sistema é responsável por manter o equilíbrio do organismo: os endocanabinoides que produzimos se ligam a receptores, restauram o balanço e são destruídos.

Divulgação
(|Divulgação/Divulgação)
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Muitas vezes, porém, o sistema não é capaz de se restabelecer por conta própria: é quando os fitocanabinoides, vindos da cannabis, assumem esse papel, executando a função. Quem identificou esse sistema e os principais fitocanabinoides foi o químico israelense Raphael Mechoulam nos anos 1960, mas os primeiros registros de uso medicinal da planta são ancestrais: datam de cerca de 6 mil anos atrás na Ásia, Oriente Médio e África.

A antiguidade não impediu o preconceito criado em torno do uso recreativo, que gerou uma onda de criminalização em diversos países e ainda hoje atrasa as pesquisas científicas. Foi apenas em dezembro de 2020, a pedido da Organização Mundial da Saúde (OMS), que a ONU reclassificou a cannabis: ela foi retirada do Anexo IV da Convenção sobre Narcóticos de 1961, que classifica as drogas mais perigosas, o que removeu globalmente o impedimento para seu uso médico e científico. Hoje, a maconha é classificada entre as substâncias de menor potencial danoso.

“A planta possui mais de 120 componentes, os chamados fitocanabinoides, que se fortalecem e criam um grande potencial fitoterápico” Maria Teresa Jacob, especializada em endocanabinologia e membro da Sociedade Brasileira para Estudo da Dor.

A mudança impulsionou ainda mais as pesquisas acerca do potencial terapêutico da planta, especialmente para tratar doenças neurológicas. A farmacêutica gaúcha Nadja Schroder, professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), testa o CBD em ratos com sintomas que mimetizam a síndrome de Alzheimer. Os achados do seu grupo de pesquisa mostram que o óleo possui, além das propriedades já conhecidas,
características que protegem as células da apoptose, morte celular comum em demências.

A ideia é que ele possa ser utilizado para diminuir ou até deter a morte neuronal, retardando o avanço da condição. Mas a hipótese ainda não está sendo testada em humanos. Um dos estudos mais recentes conduzidos por Nadja também envolve as disfunções cognitivas induzidas pela menopausa. A pesquisadora observou que as diferentes demências são, em geral, mais comuns em mulheres nessa fase da vida, se comparado aos homens da mesma faixa etária. Isso acontece porque o estrogênio, hormônio que entra em queda com a menopausa, tem função neuroprotetora, e a sua ausência deixa a mulher mais suscetível.

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A pesquisa, que acabou de ser aprovada, vai avaliar o CBD como possível alternativa para quem não pode fazer suplementação hormonal para tratar os sintomas adversos da condição. Por enquanto, a equipe só testou o CBD na recuperação da memória, com resultados promissores: nos modelos
usando animais, boa parte da função cognitiva foi recuperada com doses controladas.

O desafio segue sendo o acesso à substância por causa do preço alto. Em 2017, a Anvisa aprovou o registro do primeiro medicamento à base de cannabis, o Mevatyl, indicado para adultos com esclerose múltipla. Apesar da produção nacional, a droga não é facilmente encontrada nas farmácias e três ampolas de 10ml têm custo médio de 2,7 mil reais. Para a maioria das famílias, resta apelar às associações de pacientes, como fez Natália, ou produzir o CDB em casa, uma alternativa que pode ser arriscada na avaliação de Nadja por não seguir padrões usados pela indústria.

“É muito comum que se tenha um extrato com uma concentração desconhecida de cada um dos compostos. Mas é uma situação muito delicada porque as famílias com crianças com epilepsias graves realmente se beneficiaram muito do uso caseiro”, reconhece.

A Apepi e a Associação Brasileira de Apoio Cannabis Esperança (Abrace) conseguiram liberação judicial para a produção do próprio óleo de CBD e facilitam o processo de importação junto à Anvisa para seus membros. O paciente sempre passa por uma avaliação médica e só pode adquirir o óleo com apresentação de receita.

Para vencer esses entraves, os pesquisadores brasileiros apostam nos resultados promissores dos estudos com foco na endometriose e nos transtornos neurológicos que terão início neste ano. “A melhor forma de avançarmos na legislação, reduzir os preços de importação e melhorar o controle sobre o óleo produzido no país é termos embasamento científico”, disse Omero Poli Neto, da USP de Ribeirão Preto. “É só com pesquisas sérias que teremos diretrizes precisas de uso do CDB.” Os relatos dos pacientes impressionam, como o da estudante de medicina.

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Hoje, Natália e sua gata, Jasmin, diagnosticada com FeLV, a leucemia felina, tomam o CDB juntas. “Ela nunca teve manifestação da doença”, conta. Através do canabidiol, a planta ancestral segue escrevendo sua história.

 

 

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