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“Comida não pode ter bula”, defende antropóloga Paula Pinto

Especialista em hábitos alimentares mostra como a relação estabelecida com o que vai no prato ajuda a nos estruturar como indivíduos

Por Flávia G. Pinho
Atualizado em 30 jun 2017, 13h36 - Publicado em 26 abr 2017, 09h45
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  • Doutora em antropologia social pela Universidade de São Paulo, Paula Pinto e Silva, 42 anos, cursava a faculdade de ciências sociais quando compreendeu que a paixão por comida, desenvolvida desde os tempos de criança, era mais do que gula.

    “Propus uma tese de mestrado sobre a etnografia da cozinha brasileira. Queria descobrir por que comemos do jeito que comemos, mas o Departamento de Antropologia ficou estarrecido. Alegaram que, lá, só se estudavam coisas relevantes.” conta.

    Paula não deu bola. Com o endosso da antropóloga Lilia Schwarcz, sua orientadora, tornou-se uma das maiores autoridades no país em assuntos que parecem saídos do nosso dia a dia: os ingredientes da mesa brasileira, nossos hábitos alimentares e as tradições que evocamos na hora da refeição. Em seu escritório paulistano, Paula falou a CLAUDIA.

    CLAUDIA: De onde vem seu interesse pela comida?
    Paula: Sempre gostei de comer. Além disso, em família, tudo se resolvia à mesa.

    CLAUDIA: O laço com a comida só se constrói com essas situações familiares?
    Paula: Não. Todo mundo adoraria ter a história de uma avó, mas há uma geração inteira com saudade do que nunca teve, filha das mães que optaram por trabalhar fora. As primeiras blogueiras de culinária surgiram daí, no começo dos anos 2000. Elas usavam linguagem simples e foram atrás de uma referência que não tinham. Hoje, quem capta isso bem é a Rita Lobo. Ela fala às pessoas sem tradições culinárias e ainda ensina a arrumar a mesa, mostrando que os rituais fazem parte do comer bem.

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    CLAUDIA: Então, a entrada da mulher no mercado de trabalho interferiu na relação dos filhos com a comida?
    Paula: Sim, mas de formas diferentes no mundo. Nos Estados Unidos e na Inglaterra, elas se libertaram da rotina doméstica e abriram espaço para o alimento industrializado, sem se importar se o filho ia almoçar pizza todo dia. O resultado é a epidemia de obesidade. O foco do Jamie Oliver é buscar essa tradição perdida. Já no Brasil, e na maioria dos países da América Latina, as mulheres entraram no mercado de trabalho mais tarde, nos anos 1980, mas não largaram o universo doméstico. Surgiu a jornada dupla, pois elas queriam que o filho continuasse comendo arroz com feijão no almoço e precisavam deixar o prato pronto na véspera.

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    CLAUDIA: E os homens nessa história?
    Paula: Não é porque as mulheres saíram para trabalhar que eles ocuparam o posto nas questões domésticas – incluindo a alimentação. Ocorre uma saída feminina, substituída muitas vezes pela avó ou pela empregada, e apenas parcialmente pelo pai. Quando os homens entram na cozinha – nos últimos anos, por influência dos chefs –, querem uma experiência gastronômica, jamais fazer arroz e feijão. Isso se mantém como função da mulher.

    CLAUDIA: O que isso diz das brasileiras?
    Paula: Que não rompemos com nossas tradições alimentares. Alguém que come hambúrguer diante do computador chega em casa e diz que não almoçou, só comeu um sanduíche. Enquanto não consideramos lanche como refeição, nossa estrutura alimentar está atuante. A marmita, sempre em cena nas classes pobres, voltou a fazer sucesso em outros universos – e não só pelo dinheiro. É levar um pedaço de casa com você.

    CLAUDIA: Qual a importância de manter tradições alimentares?
    Paula: O alimento é um dos traços culturais mais relevantes para a formação da pessoa. Afinal, aprendemos a comer antes de falar. Quem alimenta o bebê ensina gosto, paladar, cheiro. Passamos a amar tanto aquilo que, pelo resto da vida, quando estamos fora de casa, sentimos saudade. O hábito alimentar envolve não só ingredientes mas também o preparo e as circunstâncias: comer sentado à mesa, usar garfo ou palito, desligar ou não a TV.

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    CLAUDIA: Mas as tradições não mudam?
    Paula: São traços de longa duração. No caso do brasileiro, mantivemos o hábito de preferir comida feita no dia e de juntar vários preparos no mesmo prato. E também o de comer em família.

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    CLAUDIA: O que acontece quando o teor de nutrientes passa a ser o critério mais importante na escolha da refeição?
    Paula: A medicalização da comida faz parte de um fenômeno maior: as pessoas estão fazendo o possível para alongar sua existência e acham que só não serão saudáveis se não quiserem. Mas isso gera uma angústia enorme e ainda retira o afeto do ato de comer. Parece que não importa mais se você gosta ou não da comida. O que vale é fazer bem para a saúde. A incapacidade de escolher o que comer, sem depender do rótulo ou da nutricionista, é um distúrbio grave. Ainda mais porque toda pesquisa científica é passível de ser derrubada. Veja o caso do ovo, que era vilão e foi reabilitado.

    CLAUDIA: O número crescente de intolerantes a glúten e lactose deriva daí?
    Paula: Alguns diagnósticos têm fundo biológico, mas muita gente desenvolve medo da comida. E ela acaba mesmo fazendo mal, é uma relação nociva.

    CLAUDIA: Como encontrar o equilíbrio entre alimentação saudável e afetiva?
    Paula: Comida não pode ter bula. Na minha casa, nunca mandei minhas filhas comerem algo só porque fazia bem. A relação afetuosa passa pelo prazer e pela transmissão de felicidade.

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