Em outubro de 1980, o empresário americano Steve Titus foi detido pela polícia em Seatac, Washington. A fisionomia e o carro dele eram semelhantes aos de outro homem que tinha estuprado uma mochileira na estrada. Durante a investigação, a vítima achou que, entre os suspeitos, Titus era “o que mais se aproximava” do agressor, e os investigadores se encarregaram de que isso se tornasse verdade. No dia do julgamento, ela não teve dúvidas: ele era o estuprador. O empresário foi condenado à prisão perpétua, mas sempre defendeu sua inocência. Enquanto aguardava a sentença, passou os detalhes do caso ao repórter Paul Henderson, do Seattle Times, que depois ajudou a descobrir o verdadeiro culpado. Titus foi inocentado e processou a polícia por plantar evidências e induzir falsas memórias na vítima. Desempregado e sem dinheiro, ele morreu de ataque cardíaco poucos dias antes do julgamento contra as forças de segurança, em 1985.
O caso chamou a atenção da psicóloga Elizabeth Loftus, referência no estudo da memória. Ela queria entender como a vítima tinha sido influenciada a criar uma lembrança fictícia. O resultado de suas pesquisas trouxe um novo entendimento da ciência sobre o tema: hoje, sabemos que as memórias viajam pelo cérebro, são maleáveis e podem ser modificadas – até mesmo as que carregam elementos importantes da nossa biografia.
Nos últimos 50 anos, a psicóloga coordenou uma série de estudos que tratam da maleabilidade da memória, nos quais as lembranças são manipuladas com palavras e imagens. Para isso, os pesquisadores utilizam uma memória real de cada participante e buscam adicionar elementos falsos, como um vidro quebrado após um acidente de carro ou o rosto de uma pessoa desconhecida durante um interrogatório. Em 1999, uma das pesquisas de Elizabeth concluiu que a relação psicólogo-paciente também pode contribuir para a indução de falsas memórias. No experimento, um terapeuta analisou os relatos dos sonhos dos pacientes e os relacionou propositalmente a situações em que, por exemplo, eles teriam se perdido em espaços públicos antes dos 3 anos de idade – embora os voluntários tivessem marcado previamente em um questionário que nada disso havia ocorrido. Conforme escutavam o parecer do psicólogo, se convenceram de ter passado por alguma experiência de abandono parental ou sumiço na infância, adicionando outros detalhes fictícios à história.
Como se falseia a memória?
De acordo com a neurociência, as memórias passam por um processo lento e gradual de filtragem e consolidação. Isso faz com que a maioria das informações que chegam até nós esteja fadada ao esquecimento: dificilmente você vai lembrar dos detalhes de seu almoço de dois meses atrás, a menos que sua mente tenha algum motivo para considerar essa informação valiosa (por exemplo, se foi seu aniversário). As que perduram servem como repertório para o cérebro conseguir prever desfechos futuros e se preparar para novas situações.
“As memórias são representações psíquicas do passado. Mas não são absolutas, porque se reconstroem cada vez que as utilizamos”, explica o biólogo Martín Cammarota, chefe do Laboratório de Pesquisa da Memória do Instituto do Cérebro, na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (ICe-UFRN). “A melhor maneira de modificar uma memória é utilizá-la”, diz.
Há três categorias básicas de classificação das memórias: 1) procedimentais, que depois de apreendidas são acionadas de forma automática, como andar de bicicleta ou amarrar um cadarço; 2) semânticas, relativas ao conhecimento adquirido sobre fatos gerais, como saber que Brasília é a capital do Brasil ou que limão é uma fruta cítrica; e 3) episódicas, que mantêm os registros de eventos em nossa vida, como um passeio no parque ou uma festa de casamento. É nessas duas últimas que ocorrem as falsas memórias. “Na hora que eu vou montar o quebra-cabeças, sempre faltam algumas pecinhas. E eu posso preencher esses buracos com o meu conhecimento de mundo ou por influência externa”, ilustra a psicóloga Lilian Milnitsky Stein, professora da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.
“As memórias são representações psíquicas do passado. Mas não são absolutas, porque se reconstroem toda vez”
– Martín Cammarota, biólogo
A falsa memória seria, portanto, um efeito colateral da nossa capacidade mental de atualização e complementação das lembranças. “Uma memória antiga que não foi muito utilizada pode ser mais vulnerável a alterações. Mas se for uma memória antiga que foi ratificada ao longo do tempo, vai ser difícil transformá-la em outra memória diferente, porque ela teve as conexões fortalecidas”, acrescenta o biólogo Lucas de Oliveira Alvares, chefe do Laboratório de Neurobiologia da Memória da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
A maleabilidade, por outro lado, também é fundamental no processo de ressignificação de traumas. “Algumas abordagens terapêuticas se baseiam em reaprender a olhar essas memórias. É óbvio que nunca vão se tornar positivas, mas não vão ter aquela carga que acaba adoecendo as pessoas – como ocorre com experiências de guerra ou desastres ambientais”, pontua Lilian Milnitsky Stein. Mais do que determinar a verdade da memória em si, o foco é entender o que o acontecimento representou.
Além disso, hoje já é possível implantar falsas memórias totalmente artificiais a partir de estímulos sensoriais e pequenos choques elétricos – pelo menos em animais criados em laboratório. Em um estudo publicado em 2019, cientistas da Universidade de Toronto conseguiram fazer com que camundongos reagissem de forma positiva ou negativa a um determinado cheiro sem nunca tê-lo experimentado. Os pesquisadores estimularam, ao mesmo tempo, os neurônios que decodificam aqueles odores e uma outra região do cérebro responsável por atribuir sensações de estresse ou recompensa. Ao sentirem o odor real, os animais que tinham sido estimulados anteriormente demonstraram reações de medo ou interesse, ao contrário daqueles que não tinham passado pelo procedimento.
Esse tipo de experiência, porém, não é tão facilmente replicável em humanos: ao contrário dos ratinhos, cujo o mundo se resume à gaiola e aos testes em laboratório, nossas novas memórias são formadas a partir de outras preexistentes. “É muito difícil determinar onde uma memória começa e termina. O que tem início e fim são os eventos, não as memórias”, observa Cammarota.
Efeito Mandela
Historiadores, sociólogos, filósofos, neurocientistas e juristas seguem se debruçando sobre o tema de quão fidedignas são nossas memórias – e até que ponto podemos utilizá-las sem questionamento. Parte da explicação para essa dúvida tem a ver com o fato de que nossas lembranças, muitas vezes, não são exatamente “nossas”. Na primeira metade do século 20, o filósofo francês Maurice Halbwachs ajudou a aprofundar um conceito hoje consagrado: a noção da memória coletiva. Ele percebeu que, através de diferentes vivências e informações retiradas da literatura, jornais e fotografias, era comum acabarmos incorporando uma série de fatos que nunca testemunhamos. A tal “memória coletiva” era carregada através dos tempos e acabava se confundindo com a nossa vida particular. Preso pelos nazistas, Halbwachs morreu em 1945 no campo de concentração de Buchenwald. Coube a seus seguidores, anos mais tarde, perceber na prática como a própria guerra que o vitimou passou a ser incorporada às memórias dos sobreviventes, por vezes gerando uma confusão e uma invenção: camponeses franceses que passaram pela Segunda Guerra, por exemplo, lembravam de suas terras sendo invadidas por soldados alemães com “capacetes pontudos”. Só que os nazistas não usavam essa indumentária: esses capacetes eram das tropas dos soldados do kaiser Guilherme II, duas décadas mais cedo, na Primeira Guerra. Ainda assim, a memória da invasão original, contada e recontada pelos pais, acabaria por se misturar com aquilo que os filhos viveram anos depois.
“É muito difícil determinar onde uma memória começa e termina. O que tem início e fim são eventos, não as memórias”
– Martín Cammarota, biólogo
Mais recentemente, a ideia de falsas memórias mantidas por um grande grupo ganhou um apelido: o Efeito Mandela. O nome se deve ao fato de que muitas pessoas tinham certeza da morte do lendário ativista sul-africano nos anos 1980. Na verdade, Nelson Mandela viveu para ver o fim do Apartheid, tornou-se o primeiro homem negro a presidir o seu país imediatamente após isso e só faleceu em 2013, aos 95 anos. E é possível que você já tenha sentido um efeito parecido em sua própria cabeça, porque há um caso brasileiro bastante notório: ao relembrar o 11 de setembro de 2001, dia do atentado às Torres Gêmeas, muitas pessoas que eram crianças na época acreditavam ter visto a interrupção de um episódio de Dragon Ball Z pelo plantão da Rede Globo, anunciando o choque do primeiro avião em Nova York. Era uma lembrança vívida, afinal, tratava-se de uma das manhãs mais marcantes da infância. Mas era falsa: quando a história ganhou pernas, os arquivos da TV vieram à tona e se descobriu que o anime só entraria no ar naquele dia mais de uma hora após a programação ser interrompida com o noticiário ao vivo. Provavelmente, a memória de outras manhãs assistindo a desenhos se misturou com o que de fato aconteceu naquele dia e foi retroalimentada pelo relato de outras pessoas na internet. A confusão era tão poderosa que tinha gente que “sabia” exatamente até qual era o tal episódio que foi interrompido, mas, na verdade, não foi.
As memórias, sejam coletivas ou individuais, vivem carregadas de emoções e lacunas que alteram nossa percepção sobre a realidade. Mas isso não faz delas menos importantes: mesmo aquelas factualmente inverídicas estão contempladas pelo funcionamento normal do nosso cérebro, assim como o esquecimento. “Mais do que nossos genes, somos nossas memórias. É por isso que duas pessoas geneticamente iguais ainda são indivíduos diferentes”, reflete Cammarota. E assim como em qualquer biografia, nossos erros também fazem parte da nossa história.