Já ouviu falar em neurodiversidade? O termo vem ganhando cada vez mais espaço nas discussões sobre educação inclusiva e, muito mais do que categorizar alguns tipos de transtornos, o que ele pretende é ampliar o espaço desse guarda-chuva. Afinal, é para caber todo mundo! “A gente entende neurodiversidade como algo que abrange todas as diferentes formas que a gente se apresenta enquanto ser humano”, introduz Thays Guedes, psicopedagoga e especialista em Educação Inclusiva.
O conceito da neurodiversidade apareceu pela primeira vez na literatura acadêmica em 1998, mencionado pela socióloga australiana Judy Singer – e apontava que a mente humana poderia funcionar de diversas maneiras, variando condições naturais do nosso cérebro. Hoje em dia, com a ascensão das redes sociais, o termo ficou mais conhecido pelas questões que abrangem o neurodesenvolvimento, como, por exemplo, o Autismo e o Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH).
Para Thays, que também é orientadora pedagógica em uma escola municipal do interior do Rio de Janeiro, o termo pode ser encarado como uma questão social. “Existem diferentes formas de como um indivíduo se apresenta, e ele ainda assim está dentro do guarda-chuva da neurodiversidade. Por exemplo, a gente pode se deparar com crianças com deficiências múltiplas, crianças que são autistas e que também têm Síndrome de Down, crianças que são autistas e também têm o TDAH… Então, quando a gente pensa em neurodiversidade, a ideia é acolher as diferenças múltiplas, deficiências e transtornos” – e, aprender sobre e respeitar todas elas, é essencial.
Histórias da neurodiversidade e caminhos possíveis
Ensinar sobre essas diferenças entre seres humanos pode não ser fácil, mas é necessário para que a inclusão aconteça desde sempre. “Quando chega uma criança Autista na sala, a professora deve explicar para a turma sobre o transtorno. E isso independentemente da faixa etária da criança, afinal existem comportamentos diferentes do que as crianças estão acostumadas, né?”, questiona Thays. Para ela, é de extrema importância que as escolas pensem que a inclusão não é apenas colocar aquela criança dentro da sala de aula – é essencial debater e ensinar a diversidade.
E como ensinar tudo isso? “Primeiro, vamos tentar usar termos mais claros, né? Se eu chego para uma criança e falo sobre neurodiversidade, ela não vai entender. Precisamos ser claros: ‘Esse é o seu coleguinha e ele é autista’ – daí, explicamos as diferenças. Não é errado dar nome às coisas. É muito melhor que falar que a criança tem um ‘probleminha’”, pontua Thays. A psicopedagoga reforça, inclusive, que existe literatura infantil para isso e menciona o livro “Meu Amigo Faz iiiii”(Editora Pingue Pongue Educação), que narra a chegada de uma criança com autismo na escola.
A autora do livro, Andréa Werner, jornalista e escritora, hoje é também fundadora do Instituto Lagarta Vira Pupa, Presidente da Comissão dos Direitos das Pessoas com Deficiência e Deputada Estadual em São Paulo. Ela não tinha conhecimento sobre alguns transtornos até a chegada do seu filho Theo, diagnosticado com Autismo aos 2 anos, em 2010. “Não sabia sobre o tema e hoje acho isso até engraçado porque eu cresci sabendo que tinha um tio Esquizofrênico, o que já mostra a neurodiversidade na família”, conta Andréa.
Ao saber do diagnóstico do Theo, o choque foi grande já que a gravidez foi extremamente desejada na vida de Andréa. “Foi uma dor muito grande entender que o filho que eu sempre sonhei, não era como eu tinha idealizado. E essa foi uma dor que eu precisei lidar. O Theo não tem nada a ver com isso. Ele não tem culpa de eu ter idealizado ele de um jeito específico por capacitismo da minha cabeça”, relembra.
Viviane Schwenck, natural de Campo Grande, no Rio de Janeiro, conta que só descobriu que seu filho tinha a Síndrome de Down após o nascimento do Enri, que hoje tem 11 anos. “Eu recebi a notícia de que ele tinha uma doença cardíaca e a Trissomia do 21 enquanto ainda estava anestesiada do parto. Obviamente foi um susto”, lembra. Com o tempo, Viviane vestiu a camisa da causa e passou a investir seu foco total na educação de Enri: “Todo esse estímulo fez com que ele tivesse um desenvolvimento gigantesco. Ele começou a andar aos 2 anos e, seis meses depois, entrou na escola”. Para a mãe, a educação sobre a neurodiversidade é de extrema importância. “É bom para a autoestima dele, que enxerga do que ele é capaz, mas também para os coleguinhas que aprendem a lidar com as diferenças. Esse contato só soma no desenvolvimento de ambos os lados”, conta.
A neurodiversidade nas escolas
Thays entende esse viés positivo também. “Quando a gente inclui a criança na escola e ela tem acesso a um profissional de apoio e a um planejamento individualizado para crianças com deficiência, as outras crianças entendem que a chegada do coleguinha que, inicialmente, causa estranhamento, não é para ser negada. É diferente daquilo que ele conhecia, mas agora ele está conhecendo”, completa a psicopedagoga.
Na época em que Enri passou a frequentar a sala de aula, a família de Viviane morava em Belém do Pará e, mesmo em uma das melhores escolas da cidade, ela sentia que o preparo para receber seu filho, com a Trissomia do 21, não era dos melhores. “Não é só colocar o meu filho ali, existe uma lei de como recebê-lo”. A partir daí, Viviane cobrou por melhorias e pelos direitos do Enri, da escola e de si própria. Ela, que já tinha formação em Enfermagem, fez pós-graduação em Síndrome de Down. “Eu sempre tive a visão de que ele deveria estar em uma escola regular, estando com outras crianças e dentro dos direitos dele. Hoje em dia, eu vejo que toda essa minha cobrança pela educação dele valeu a pena”, completa.
Para tudo isso acontecer precisamos de profissionais qualificados, é claro, e esse é mais um dos desafios que se encadeiam dentro da neurodiversidade. “Aquela criança não escolheu estar na escola, mas eu, como profissional, escolhi. É meu papel buscar informações, me qualificar e assumir a responsabilidade de receber essa criança da melhor forma possível”, diz Thays.
Educação na escola, mas também em casa
E, ainda que a escola cumpra a sua função social de educar, ela é uma extensão da educação que deveria acontecer dentro de casa junto aos familiares. Thays conta que, infelizmente, a escola é o lugar onde a maioria das situações que envolvem preconceitos acontecem. “Eu já fui questionada por um pai sobre o porque não avisaram que uma criança Autista estaria na sala de aula do seu filho”, relembra.
Situações de preconceito raramente partem de crianças pequenas. A educação, portanto, faz com que no futuro não temos adultos preconceituosos e que não saibam lidar com diferenças. “O acolhimento já é intrínseco nas crianças, embora possa se perder se não acompanharmos”, pontua Thays. “Não é você tratar somente a criança, você precisa tratar também os pais. Se eles não estiverem envolvidos e abraçando a causa, o desenvolvimento é muito mais difícil”, finaliza Viviane.
Para Andréa, outro ponto de destaque é mudar o discurso de que todo mundo é igual: “Entendo que a intenção é boa, mas no fundo ele é muito nocivo porque não somos iguais. Há diferenças no tom da tele, na textura do cabelo, no jeito de falar – inclusive, tem gente que nem fala, né? O melhor jeito de acabar com o bullying e o preconceito é fortalecer a ideia de que ser diferente é normal”.
Neurodiversidade e políticas públicas
Com a chegada do Theo, Andréa decidiu mergulhar no assunto e dar o seu melhor para o desenvolvimento de seu filho, foi quando criou o blog Lagarta Vira Pupa, que hoje é também Instituto. “Na época, não tinha nada sobre Autismo na internet, então aquilo logo viralizou e cresceu rápido entre as mães que estavam buscando informações. Recebia muitas mensagens e, então, comecei a entender todo um contexto fora da minha bolha – que é a da maioria da população brasileira, que depende do SUS, que não tem terapias disponíveis, plano de saúde e, muitas vezes, nem um diagnóstico de seus filhos”, diz.
Daí, Andréa foi colhendo cada vez mais informações, virou ativista, transformou o blog em Instituto, lançou dois livros e se politizou. “Entendi que a sociedade precisava de políticas públicas para que as pessoas pudessem ter acesso ao diagnóstico e tratamento pelo SUS. Até que, para além disso, percebi também que precisávamos de representação na política para mudar essa situação. Foi quando me candidatei a Deputada Estadual”, explica.
Hoje, Andréa reflete sobre a maternidade do Theo e entende que, enquanto estava gerando seu filho dentro dela, também estava gerando ela mesmo. “Eu estava gestando a pessoa que eu sou hoje, porque com o nascimento do Theo foi quando eu descobri quem eu sou de verdade”, diz fazendo referencia também ao seu próprio diagnostico tardio do Autismo.
Por fim, além de educar, conversar e respeitar, é preciso também fiscalizar! “Temos leis maravilhosas, mas que precisam ser cumpridas. A legislação prevê a permanência dessas crianças na escola, adaptação no material escolar, acompanhante especializado e outros direitos que infelizmente são descumpridos. Enquanto isso não acontecer, não teremos a inclusão dessas pessoas plenamente na sociedade. Se as crianças, desde pequenas, conviverem com a diversidade, elas serão adultos que enxergam isso com naturalidade. Para mim, a inclusão escolar é o pilar de uma sociedade mais justa e igualitária”, finaliza Andréa.