Apesar de insípida, inodora e incolor, a água qualificada como potável que chega às nossas torneiras talvez não seja tão pura como imaginamos. Dois estudos recentes detectaram compostos prejudiciais à saúde, um perigo invisível e desconhecido pela maioria da população.
Pesquisadores do Instituto de Química da Universidade de Campinas (Unicamp) identificaram a presença de 58 substâncias, entre medicamentos, produtos de higiene pessoal, cosméticos, hormônios, inseticidas, defensivos agrícolas e até drogas ilícitas, como cocaína, na água de rios, esgoto e também na que abastece as residências.
O herbicida atrazina, proibido na Europa, mas permitido na agricultura brasileira, foi identificado em 73% das amostras, por exemplo. A análise começou a ser realizada há dez anos com coleta em mais de 800 pontos da Região Metropolitana de Campinas (SP).
Em abril, a Agência Pública e o Repórter Brasil, em parceria com a organização suíça Public Eye, anunciaram que a água de um a cada quatro municípios brasileiros está contaminada por um coquetel de agrotóxicos. O levantamento foi feito com dados do Sistema de Informação de Vigilância da Qualidade da Água para Consumo Humano (Sisagua), ligado ao Ministério da Saúde.
A cada seis meses, as empresas de abastecimento são obrigadas a testar a qualidade da água que é fornecida à população e enviar as informações para um banco de dados. Os testes monitoram a presença de 27 agrotóxicos, além de vestígios de microrganismos e metais pesados.
Entre 2014 e 2017, foram encontrados resíduos dos 27 agrotóxicos na água de 1 396 municípios. O estado de São Paulo é o recordista: 504 cidades apresentaram todas as substâncias. Em segundo lugar está o Paraná, onde o coquetel foi encontrado em 326 cidades. Vale destacar que, dos 27 agrotóxicos monitorados, 21 são proibidos pela União Europeia, dados os riscos que oferecem à saúde humana; 16 são classificados pela Anvisa como altamente tóxicos; e dez deixaram de ser comercializados no Brasil.
“Ainda são detectados por serem muito persistentes”, explica a biomédica Karen Friedrich, pesquisadora da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e membro do grupo temático Saúde e Ambiente, da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco). “É o caso do DDT, utilizado no passado para controle de mosquitos e pragas agrícolas”, diz ela.
Foi proibido nos anos 1970, depois que se constatou sua alta toxicidade – mata não só as pragas mas também seus predadores naturais, causando desequilíbrio ambiental. No ser humano, tende a se acumular no tecido gorduroso, provocando danos neurológicos, respiratórios e cardiovasculares.
Fatores de risco
Em geral, as concentrações identificadas no estudo da Unicamp eram mínimas, e no levantamento da Agência Pública estavam dentro dos limites permitidos pela lei brasileira. Portanto, seriam insuficientes para causar algum efeito tóxico imediato no corpo humano.
“O que os cientistas e as agências reguladoras procuram elucidar, entretanto, são os riscos da exposição a pequenas concentrações durante um período estendido de tempo”, explica a professora Cassiana Montagner, que coordenou a pesquisa da Unicamp.
Trocando em miúdos, o que acontece com a saúde de quem bebe regularmente essa água e entra em contato com um pouquinho dessas substâncias todo dia. Segundo a professora, três grupos de contaminantes emergentes (nome técnico das mais de mil substâncias, entre agrotóxicos, protetores solares, drogas lícitas e ilícitas, que podem ser encontradas na água) têm atraído a atenção da comunidade científica.
São eles os que afetam o sistema endócrino de homens e animais, os que atingem o sistema neurológico e os antibióticos, porque podem favorecer a resistência bacteriana. Os disruptores hormonais (o primeiro grupo), entre eles o herbicida atrazina, são capazes de perturbar o sistema endócrino (que controla a reprodução sexual e o crescimento).
“Podem levar a puberdade precoce, queda na fertilidade masculina e feminina e aparecimento de câncer de tiroide, testículo, útero e mama”, avisa a ginecologista e obstetra Maria Cecília Erthal, diretora da Clínica Vida, no Rio de Janeiro. “As meninas estão menstruando mais cedo porque estão mais expostas a essas substâncias, não só por meio da água mas dos alimentos e do ar.”
De acordo com Cassiana, os contaminantes emergentes também têm sido relacionados a alterações no metabolismo, inclusive obesidade, e danos ao sistema imunológico.
Para o médico toxicologista Angelo Trapé, professor aposentado da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp, a presença de um resíduo nem sempre significa problema. “A quantidade que chega às pessoas é tão irrisória que não há motivo para se alarmar”, afirma. “Diferentemente dos agrotóxicos organoclorados (como o DDT), que são persistentes, os herbicidas mais modernos, como o glifosato, são excretados totalmente pelo organismo.”
Essa posição está longe de ser um consenso. O glifosato está em discussão na Europa e vem sendo reavaliado pela Anvisa desde 2008. A empresa fabricante foi alvo de 13,4 mil ações judiciais nos Estados Unidos até abril relacionadas a possíveis danos à saúde.
Em 2015, a Agência Internacional para a Pesquisa de Câncer, ligada à Organização Mundial da Saúde, classificou esse composto como “provavelmente cancerígeno” para humanos após analisar centenas de estudos. Já a Agência de Proteção Ambiental Americana, que emprega metodologias diferentes para sua análise, informa que é seguro se usado corretamente.
Mais itens na balança
É preciso considerar outros fatores referentes aos defensivos agrícolas. Primeiro, no Brasil estão registrados mais de 500 agentes químicos usados na agricultura. Apenas 27 são monitorados. E nem todas as cidades enviam informações regularmente. Dos 5 570 municípios brasileiros, 2 931 não realizaram testes na água entre 2014 e 2017. Isso impede um diagnóstico mais amplo do que recebemos em casa.
Segundo, os valores máximos permitidos no Brasil para cada composto estão muito acima dos adotados fora daqui. “O limite de glifosato na água brasileira é 5 mil vezes maior do que o tolerado pela comunidade europeia”, exemplifica Karen Friedrich. No estudo divulgado pela Agência Pública, 23% das amostras tinham concentrações superiores à margem de segurança segundo o critério europeu; já pelos critérios nacionais, apenas 0,02% ultrapassou o limite. Nessas circunstâncias, a água potável daqui seria considerada imprópria na Europa.
Terceiro, enquanto no Brasil existem apenas limites individuais para os agrotóxicos, a legislação europeia prevê a mistura de substâncias, uma situação mais realista, e procura restringi-la. Afinal, ao beber água não se ingere apenas um contaminante, mas vários. “A combinação pode potencializar o efeito de cada um, como ocorre quando certos medicamentos são ingeridos com álcool”, acrescenta a biomédica. “O que vai acontecer, por exemplo, quando estiverem presentes dois agrotóxicos com potencial para causar linfoma, como o glifosato e o herbicida 2,4-D?”
De acordo com Cassiana, nossa legislação precisa ser atualizada. “É como insistir em usar só telefone fixo em tempos de smartphone”, compara . Isso é necessário sobretudo porque o Brasil tem um nível de consumo alto, equivalente ao europeu e ao americano, mas um sistema de saneamento precário: 60% do esgoto é lançado nos cursos de água sem nenhum tratamento. Com ele vão resíduos de sabonetes e xampus usados no banho, medicamentos e hormônios excretados na urina.
Os rios também recebem agrotóxicos levados pela água da chuva. E dali se coleta o líquido que vai para as torneiras. Apenas metade da população tem acesso a água tratada. Segundo Cassiana, os processos convencionais de tratamento empregados no Sul e no Sudeste foram planejados há 60 ou 70 anos para remover sólidos grosseiros e eliminar agentes biológicos que podem causar doenças, e não para captar água de rios poluídos e livrá-los dos contaminantes emergentes.
Portanto, parte desses químicos permanece na água potável. Sistemas adicionais à base de raios ultravioleta e ozônio poderiam acabar com eles. A primeira barreira, porém, seria tratar o esgoto. “Nosso sistema de saneamento básico precisa ser repensado para atender a esse novo padrão de consumo”, diz Cassiana. “Tecnologias existem, mas requerem investimento.”
Enquanto isso, tramitam no Congresso duas propostas de leis antagônicas. Uma visa reduzir a utilização de agrotóxicos e incentivar práticas mais sustentáveis e a outra procura acelerar o registro de novos defensivos agrícolas, mesmo sem avaliação prévia do Ministério da Saúde e do Ministério do Meio Ambiente. “Se o Brasil tiver leis mais flexíveis, vai ser um depósito de substâncias perigosas”, alerta Karen Friedrich.
Como se proteger
Medidas possíveis de tomar no dia a dia que contribuem para preservar a água e a sua saúde.
• Origem
De onde vem a água que abastece sua casa? É de um poço artesiano, um aquífero, um rio? Você teria coragem de nadar nesse rio? Corra atrás das informações e avalie as respostas.
• Manutenção
Peça, através dos canais de atendimento ao consumidor, dados para a concessionária da sua cidade. Acompanhe as análises periódicas, requisitando informações sobre o tratamento da água. Os resultados devem ser públicos.
• Antes de beber
Em casa, utilize filtros eficientes. Os de carvão ativado funcionam, mas é preciso ficar atenta à manutenção rigorosa e constante.
• O que vai pelo ralo
Escolha detergentes e produtos de limpeza biodegradáveis, que não impactam o ambiente.
• Na geladeira
Prefira alimentos cultivados sem agrotóxicos. É um jeito de garantir uma vida mais saudável. Cientistas da Universidade da Califórnia, nos Estados Unidos, acompanharam a dieta de quatro famílias. Depois de seis dias à base de orgânicos, o número de substâncias tóxicas presentes na urina dos participantes caiu 60%.
• Olho no galão
A água mineral, devido à origem subterrânea, deveria ter melhor qualidade do que a da torneira. Entretanto, o armazenamento, o calor e o transporte criam outros tipos de risco, pois podem facilitar a liberação de ativos químicos das embalagens plásticas para o líquido. Essas substâncias também atuam como disruptores endócrinos. Fique atenta ao caminho que percorre aquilo que você compra.
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