Dinheiro e luto fazem parte de uma mesma conversa que a sociedade costuma empurrar para debaixo do tapete, mas que precisa ser trazida à luz. São dois temas tabus a serem enfrentados, conversados, humanizados e naturalizados.
Neste momento, em especial, deixá-los na invisibilidade pode comprometer o futuro de muitas mulheres. É que, depois do Código Civil brasileiro de 1917 e 2002, o projeto de uma terceira edição está em tramitação no Senado. Entre as muitas atualizações, o documento em debate traz mudanças nas áreas de família.
O texto, elaborado por uma comissão de 36 juristas, prevê por exemplo que, na prática, o viúvo ou viúva deixe de ter direito imediato à herança caso a pessoa falecida tenha filhos ou pais vivos.
O Código Civil e suas influências
Uma mudança dessa magnitude fala sobre números e afetos. Uma dupla incômoda para Giovanna (nome fictício). A mãe dela morreu no período da pandemia de Covid-19 por outras complicações, pegando a família de surpresa.
A avó morreu depois, este ano, mas com um inventário bem planejado e acordado entre filhos e netos. E, muito recentemente, o pai a convidou, juntamente com o irmão, para uma visita ao contador e ao cartório. Já queria passar tudo para o nome de ambos.
“Foi uma conversa dura e delicada, mas enfrentamos. É muito sensível falar sobre a morte de quem se ama com a própria pessoa que vai partir”, conta. Giovanna falou ainda sobre a curiosidade do pai em querer saber o que será feito com o seu patrimônio, o que cada um faria com os seus bens que mais ama, que têm memória. “Não tratar do assunto não diminui a dor em nada. É preciso coragem.”
Fale sobre o luto e o dinheiro
Muitos ainda acreditam que falar sobre a morte é uma forma de aproximar-se dela, atraí-la. Para a professora e advogada Daniele Chaves Teixeira, especialista em direito civil e privado e coordenadora do livro Arquitetura do Planejamento Sucessório, não conversar sobre a finitude da vida e dos relacionamentos sob a ótica do dinheiro só torna mais difícil esse momento, em que já se está tão vulnerável.
Ela avalia que existe um descompasso entre as necessidades da sociedade contemporânea, com as suas diferentes configurações, e o direito sucessório, por isso o novo Código Civil provoca um debate muito importante.
“O papel do cônjuge poderá ser diminuído, ele deixará de ser herdeiro necessário. Estamos saindo de um Código que criou o que chamamos de ‘super cônjuge’ para o que estamos considerando um ‘mini cônjuge’. Estamos retroagindo, a sociedade civil deve se colocar”, avalia.
Para a professora e advogada Mariana Regis, especialista em direito das famílias em perspectiva feminista interseccional, falta letramento jurídico para a maior parte da população.
“Ainda vigora no inconsciente coletivo a ideia de que planejamento sucessório, testamento, são coisas de gente rica, quando, em verdade, a divisão de um patrimônio composto por um carro e uma casa simples, por exemplo, pode se desdobrar em processos judiciais de inventário que se arrastam por anos, gerando conflitos em família que poderiam ter sido evitados por meio de um simples documento feito em cartório.”
Para ela, a realidade é ainda mais complexa no caso das mulheres. “Temas como casamento e constituição de família ainda são atravessados por um forte componente romântico. Logo, falar sobre dinheiro, proteção patrimonial com o parceiro romperia esse ideal romantizado da vida em família.” Ela ressalta, ainda, que com receio de serem tidas como “interesseiras”, as mulheres aceitam se casar sob o regime da separação total de bens como prova de que estão se casando por amor.
Mudanças à vista
Atualmente, a linha sucessória prioriza: 1. os descendentes (filhos) e o cônjuge; 2. os ascendentes (pais) e o cônjuge; 3. apenas o cônjuge; e 4. os colaterais, como irmãos e tios.
É preciso ressaltar que hoje o Código Civil já estabelece ressalvas que reduzem o direito de herdar do parceiro sobrevivente quando existirem filhos. O regime da comunhão, como universal ou parcial, pesa aqui. Além disso, acima de qualquer regime de bens, a viúva ou viúvo tem o direito de viver no imóvel oficial da família até o fim da sua vida, caso não haja mais bens no inventário.
Já no anteprojeto de reforma para o novo Código Civil, a(o) cônjuge e companheira(o) deixa de ser herdeira necessária, passando a ser herdeira facultativa, o que significa dizer que pode ser excluída da sucessão via testamentos.
Da mesma forma, só irá herdar os bens caso não haja descendentes (filhos ou netos), nem ascendentes (pais ou avós), ou se o seu parceiro contemplá-la em testamento.
“Não temos, contudo, a cultura de realizar testamento, então na prática, sabemos que essa proteção raramente irá ocorrer. E mais: o testamento pode ser alterado a qualquer momento e a companheira, que julgava protegida, sequer terá conhecimento antes do falecimento”, pondera Mariana Regis.
Para a advogada, o cenário coloca as mulheres em vulnerabilidade patrimonial e fortalece a invisibilidade do trabalho doméstico. Em letras miúdas, não considera que a divisão dos papéis na família ainda tem as mulheres como únicas ou principais cuidadoras de filhos e da casa, e que isso coloca desafios no acúmulo de patrimônio. Ou seja, as mulheres têm mais chance de chegar ao final da vida sem bens ou patrimônio estabelecido.
Está na hora de falar
Sempre e agora. Essas são as respostas para a pergunta acima. Postergar, não. Se as regras vão mudar, é importante entender, seja para reivindicar, seja para agir no tempo presente. O caminho é buscar desde já informações ou mesmo um profissional da área jurídica.
Importante destacar que não estamos falando apenas de morte, mas também sobre o fim de relacionamentos conjugais ou societários. “Se você não fizer nada, o Estado vai determinar para você. Em uma sociedade que ainda discrimina mulheres, novos acordos podem — e devem — estar em contratos”, alerta a professora advogada Daniela Chaves Teixeira.
O ideal é que o casal tenha o hábito de conversar sobre finanças antes mesmo de formar família, que busque educação financeira, que conheça as consequências do regime de bem que escolherem.
Adotada essa cultura na relação, o caminho a percorrer para pensar e conversar sobre planejamento sucessório pode ser mais natural e menos delicado. “É necessário ter consciência que homens e mulheres ocupam lugares sociais diferentes e que pensar sobre dinheiro, cuidados com patrimônio, é tema natural dentro da existência masculina”, afirma Maria Regis.
A psicóloga Maria Helena Franco, autora do livro Nada Sobre Mim Sem Mim: Estudos Sobre a Vida e a Morte (Editora Livro Pleno), já se deparou com diferentes histórias em seu consultório.
Para ela, falar sobre dinheiro e herança extrapola a questão prática financeira, e entra na categoria de “coisa íntima”. Muitas vezes, esses bens vêm carregados de afetos. Outras vezes, os menos agraciados se sentem menos amados, interferindo no enfrentamento do luto.
Questões antigas, ignoradas no dia a dia, podem se manifestar e expor questões de relacionamento familiar. “É uma conversa que pode não agradar a todos, ser considerada justa por uns e injusta para outros, mas que precisa ser feita”, pondera.
Somos um país um tanto tanatofóbico, ou seja, temos medo da morte. Quando uma pessoa ou a família fala sobre morte, porém, não quer dizer que ela está desistindo, mas sim abrindo os olhos para uma realidade.