Mulheres da Reserva Chico Mendes e seu papel no extrativismo do látex
Residentes do território amazônico, no Acre, elas buscam um entendimento do seu espaço na cadeia de produção sustentável da borracha
“Eu lembro que aos 14 anos já participava das reuniões de sindicato com meu pai. Ele dizia que eu era enxerida, pois sempre queria ocupar lugares que, para ele, eu não deveria. Mas nunca deixei de ir e continuei entrando em outras afiliações da minha comunidade. Era uma forma de estar presente e aprender”, conta Leide Aquino, moradora da Comunidade Dois Irmãos, na Reserva Extrativista Chico Mendes, território amazônico.
Localizada a 20 quilômetros da cidade de Xapuri, no interior do Acre, a região conta com milhares de famílias que vivem da extração de borracha, ainda muito presente no Norte do país. Dentro desse cenário, dominado por homens até hoje, as mulheres têm conquistado seu espaço.
O Acre é um dos maiores estados produtores desse recurso no Brasil e a borracha é utilizada para diversos fins, entre eles: fabricação de pneus, produtos médicos, brinquedos, equipamentos esportivos, produção de calçados e mais. A borracha amazônica também é uma das principais matérias-primas da marca de tênis sustentável VERT — lá fora, a label francesa atende por VEJA.
Há quase 20 anos, a empresa trabalha com a extração do látex no âmbito predominantemente familiar, incentivando projetos sustentáveis e igualdade de gênero. A convite da marca, fomos até a reserva acompanhar a produção do insumo. Para chegar até a região é preciso pegar uma longa estrada, saindo de Rio Branco, capital do Acre. A parte de carro é um trajeto de aproximadamente quatro horas até as margens do Rio Acre. Em seguida, um pequeno barco é usado para atravessar o curso de água. Após esse trecho, ainda é preciso andar alguns quilômetros de Pau de Arara (um caminhão adaptado para transporte de passageiros, bem comum em algumas regiões do Brasil) até, enfim, chegar na Comunidade Dois Irmãos.
O processo de extração
Por lá, acompanhamos o processo de extração do látex, que começa com a preparação do seringal, onde são feitos cortes diagonais nas árvores Seringueiras para permitir que a seiva seja extraída da casca da árvore, e depois coletada em recipientes. Em seguida, a substância é coagulada, lavada, seca e processada para produzir borracha. As mulheres estão presentes em quase todas as etapas, desde os serviços domésticos até o auxílio na produção. Quando não, em ambos. São mães, professoras, ativistas e donas de suas próprias vidas. Leide é uma delas e uma das principais lideranças femininas locais.
Foi uma luta para as mulheres serem reconhecidas como produtoras, terem acesso aos benefícios previdenciários e aposentadoria rural
Leide Aquino
Conversando com ela, vemos que mesmo em uma cultura tradicionalmente dominada por homens, a voz feminina fala alto — mesmo emitindo um som tímido. Na adolescência, acompanhou a luta do pai por uma condição melhor de vida no extrativismo e essa busca move Leide até hoje. Com um viés feminista, ela reconhece e incentiva dentro de sua comunidade a importância de educação e autonomia financeira das mulheres.
“Nos anos 1980, aqui em Xapuri, aconteceu o primeiro Encontro de Mulheres da Floresta. Na época, Chico Mendes era vivo e foi ele que articulou o encontro. Até então, durante as assembleias e reuniões, as mulheres vinham e ficavam geralmente na cozinha. Acontece ainda, mas só em determinadas ocasiões. A preocupação de Chico era como trazer as mulheres para esses ambientes”, relembra.
Hoje, existe o programa Mulheres da Borracha, que visa elevar a consciência das mulheres sobre a importância de seu papel na produção de borracha, as organizações SOS Amazônia, o Instituto de Desenvolvimento Social (IDS) e a empresa VERT. O projeto realiza oficinas e programas educativos nas comunidades do Acre que fornecem látex para a marca francesa. Ele já alcançou mais de 900 participantes, que residem em reservas extrativistas, florestas nacionais, assentamentos e comunidades rurais espalhadas por 14 dos 22 municípios do Acre. “Foi uma luta para as mulheres serem reconhecidas como produtoras, terem acesso aos benefícios previdenciários, aposentadoria rural, entre outras coisas. Mas, geralmente, elas ainda dizem que são ajudantes do marido ou apenas filhas de seringueiros. Ainda falta um certo reconhecimento”, diz Leide.
Raimunda Ferreira, que mora na Comunidade Dois Irmãos há quase 40 anos, é outra importante presença feminina e conta que Leide Aquino é uma referência. “Antes, muitas mulheres achavam que a missão delas era só trabalhar em casa. Isso mudou. Rolou um despertar aqui na comunidade e, agora, somos todas empoderadas”. Ela reitera que esse processo de criar entendimento do pertencimento das mulheres deve acontecer também dentro de casa, para que o marido e os filhos criem essa consciência. Isso vale tanto para o trabalho na produção da borracha quanto para a independência financeira, outro ponto que ela acredita que seja relevante destacar. Como em todo processo, há coisas para melhorar. “Internamente, ainda temos que batalhar muito por essa conscientização que não está 100%. A gente já vê muitas conquistas, mas precisa melhorar”, exclama.
Antes, as mulheres achavam que a missão delas era só trabalhar em casa. Isso mudou
Raimunda Ferreira
Para além de representatividade, outro tópico relevante é a violência. O Mulheres da Borracha tem um papel crucial nesse âmbito. “Há uma busca por validação por meio de percentuais e sabemos que não é preciso disso para entender que existe violência contra a mulher, seja em regiões urbanizadas ou não”, pontua Gabriela Antonia, coordenadora do projeto. “Se nós, mulheres urbanizadas, enfrentamos esse desafio diariamente, imagina em uma comunidade que carrega o reflexo da sociedade patriarcal. Como fazemos para ser diferente lá [na Reserva] se nem aqui [na cidade] a gente consegue? A violência com as mulheres urbanizadas acontece o tempo todo e não é feito nada. Imagina dentro da floresta…”, reflete Gabriela.
Quando questionada sobre o apoio fornecido nestas situações, a coordenadora se emociona. Ela conta que auxilia como pode, cedendo um espaço para que as vítimas encontrem algum alento e carinho, além de ir atrás de medidas viáveis que possam ajudar na segurança delas. No entanto, não são todos os casos passíveis de ajuda. O programa existe também para criar consciência acerca dessas situações, pois nem toda vítima consegue ter noção de que sua realidade é abusiva.
Além do projeto Mulheres da Borracha, há também o Fórum de Mulheres do Alto Acre, região composta por quatros municípios (Assis Brasil, Brasiléia, Epitaciolândia e Xapuri), criado em 2011, que busca combater à violência contra a mulher. O objetivo é também agregar a promoção da visibilidade feminina no extrativismo em geral, abordando questões de conscientização ambiental, segurança alimentar e mais, que afeta não apenas zonas urbanas, mas também as áreas rurais e florestais.
As mulheres da Reserva Chico Mendes seguem reivindicando seus lugares, com o apoio de projetos sociais e da própria coletividade, desafiando as normas de gênero e desempenhando um papel importante na cadeia da borracha. É um exemplo que inspira, pavimenta o território para gerações futuras e mostra que o princípio mais básico de qualquer movimento feminino é a união.