PL 1904 ameaça crianças e mulheres vítimas de estupro. Entenda
Conversamos com Izabella Borges e Debora Diniz sobre o possível impacto do projeto ao aborto legal no Brasil
Maria tem 18 anos, foi estuprada e interrompeu a gravidez resultante da violência após a 22ª semana. Ela foi condenada a 20 anos de prisão, enquanto seu agressor ficou entre 6 e 10 anos preso. Essa história não é real, mas pode acontecer caso o PL 1904, que tramita em regime de urgência na Câmara dos Deputados, seja aprovado.
O projeto de lei 1904, do deputado Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), equipara o aborto após 22 semanas ao crime de homicídio simples, do artigo 121 do Código Penal, com pena de 6 a 20 anos.
Por outro lado, a pena prevista para estupro no Brasil é de 6 a 10 anos caso a vítima seja adulta. Apenas se o crime for praticado contra vulnerável, quando a pessoa tem menos de 14 anos ou é incapaz de oferecer resistência, e resultar em lesão corporal grave, que a prisão pode chegar a 20 anos.
Especialistas em direito das mulheres afirmam que o projeto seria inconstitucional, pois afeta a dignidade da pessoa humana e os direitos e garantias individuais.
“A criminalização do aborto decorrente de estupro viola a autonomia da mulher e, portanto, a sua dignidade humana, o seu direito à integridade física e psíquica, seus direitos sexuais e reprodutivos, além da igualdade de gênero”, diz a advogada Izabella Borges, especializada em violência doméstica e CEO do Instituto Survivor.
Projeto de Lei 1904 afeta principalmente as crianças e pessoas em situação de vulnerabilidade
O número estimado de casos de estupro no país por ano é de 822 mil, o equivalente a dois por minuto, segundo levantamento do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) divulgado em 2023, e as principais vítimas são as crianças.
Cerca de 61,4% das pessoas que sofrem o estupro no Brasil têm de 0 a 13 anos, de acordo com dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública. Entre seus agressores, 86,1% são conhecidos e 64,4%, familiares.
A proposição impactaria principalmente esse grupo, pois a descoberta da gravidez em crianças geralmente acontece em estágios intermediários da gestação, segundo a antropóloga Debora Diniz, uma das principais pesquisadoras sobre aborto no Brasil.
“Essas vítimas são mais afetadas, porque é apenas quando o corpo começa a se transformar que normalmente descobrem a gravidez.”
Ainda podem ser impactados outros casos em que o aborto é autorizado, como risco à vida da mãe e a anencefalia fetal. “A mulher pode ser obrigada a morrer ou a ser penalizada por realizar o procedimento no segundo semestre”, pontua Deborah.
Outro ponto é que a proposta também ignora a vulnerabilidade social de pessoas que, por falta de instrução, muitas vezes não conseguem descobrir a gravidez antes das 22 semanas ou acessar instrumentos que possibilitem que seus direitos sejam assegurados nesse tempo, de acordo com Izabella.
“Meninas e mulheres negras, pobres, com baixa escolaridade, que não têm condições financeiras, são atingidas de forma mais incisiva. Elas possuem mais dificuldade ao acesso à informação e enfrentam a morosidade na concessão do direito ao procedimento, acabando por interromper a gestação em fases já mais avançadas. Agora, podem ser alvo do sistema punitivo e apenadas como se homicidas fossem. É um Projeto que, acima de tudo, revitimiza meninas e mulheres.”
PL 1904 serviria como arma política e seria a materialização jurídica contra mulheres, segundo Debora Diniz
“A política brasileira faz ciclos de uso político da questão do aborto para movimentar pautas, forças políticas, resitências e oposição”, defende Debora.
Nesse momento, seria uma manobra do congresso nacional para testar a lealdade do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) à bancada evangélica, diz a especialista.
Sóstenes Cavalcante, autor do projeto, afirmou ao blog da Andréia Sadi que pretende “testar” o presidente Lula e seu comprometimento com os evangélicos com o PL 1904.
“O presidente mandou uma carta aos evangélicos na campanha dizendo ser contra o aborto. Queremos ver se ele vai vetar [o projeto]. Vamos testar Lula”, afirmou.
Também seria uma reação contra a decisão de Alexandre de Moraes de suspender a medida do Conselho Federal de Medicina (CFM), que dificultava o acesso ao aborto legal por pessoas vítimas de estupro, acrescenta Deborah.
“Não é a questão da moral da sociedade brasileira em relação ao aborto que está sendo colocada, mas sim o seu uso como um instrumento político que movimenta hoje a extrema direita. É a materialização jurídica do ódio, como diz o ministro Silvio Almeida”, finaliza Deborah.