Assistir uma scooter em zigue-zague por uma pitoresca estradinha da Toscana me faz querer planejar uma viagem. Escuto o telejornal ao longe: “Rio Grande do Sul enfrenta o pior desastre natural de sua história, milhares estão desabrigados”. Ao caminhar, meus olhos se fixam na vitrine que expõe aquele chapéu que há tempos procuro. Que oportunidade! Alguns passos adiante, uma família pede dinheiro para o almoço, mesmo sendo quase cinco da tarde. Entro na farmácia, me assusto com o preço do remédio. A minha amiga genial chega na cidade, a vontade nostálgica de matar a saudade naquele restaurante é irresistível.
Essa é uma sequência embaralhada; um estopim para um sentimento que nós, mulheres, mereceríamos distância: o da culpa com os nossos desejos, incluindo o da compra. Os muitos problemas com os quais convivemos sendo parte integrante de um país subdesenvolvido, da mudança climática à falta de moradia, muitas vezes nos despertam remorso (ainda bem!) por gastar, seja o pouco que custamos a economizar, seja aquela grana que fez o saldo bancário saltar.
Precisamos enfrentar o tabu do que batizaram de ‘coisas de mulher’, de futilidade
Até mesmo escrever que temos o direito de nos presentear sem culpa me provoca medo do seu julgamento, leitora. Mas precisamos enfrentar o tabu do que batizaram de “coisas de mulher”, de futilidade. “Se quer ter dinheiro, não gaste”, pesquei da conversa entre um casal. Mas a maturidade é sábia. Essa senhora diz que, à medida que envelhecemos, é igualmente importante reconhecer que o dinheiro é uma ferramenta para nos proporcionar momentos de felicidade, para se ter bem-estar no presente e boas memórias no futuro.
Essa tal felicidade está intrinsecamente ligada à capacidade de cuidarmos de nós mesmas, de nos mimar de vez em quando, de celebrar conquistas, de apreciar a vida em sua plenitude. Não, não é futilidade, muito menos “coisa de mulher”. É uma afirmação de que somos — mulheres e homens, é preciso dizer — capazes de tomar decisões conscientes sobre como gastar o nosso dinheiro. Consciência seria uma palavra-chave para separar o seu gasto da sua culpa.
Algumas perguntas podem despertar algumas reflexões que, exercitadas rotineiramente, farão decantar essa consciência. Você sabe na ponta do lápis para onde vai o seu dinheiro todos os meses? Tem dívidas e gasta com juros? Conseguiu construir uma reserva emergencial? Sabe onde investir? Separa uma parte dos recursos para lazer? Apoia causas e organizações? Entende as desigualdades de raça, gênero e classe? Reconhece os seus privilégios? É independente financeiramente? Com generosidade consigo mesma, tente não remoer as respostas, porém superá-las.
Imagine uma mulher, brasileira, de 62 anos, assim como a CLAUDIA. Ela atravessou pelo menos cinco grandes planos que buscavam estabilidade econômica para o país: Cruzado (1986), Bresser (1987), Verão (1989), Collor (1990) e Real (1994). Também lidou com inflação anual de 4.922% (1994), e taxa básica de juros (Selic) de 115.334,03% (1989) — isso mesmo, não há números sobrando nessa frase. Certamente, as que encararam essa montanha-russa na fase adulta deixaram como herança (ou não) uma educação financeira.
Outros tempos, mas que produziram alertas valiosos a serem adaptados pelas gerações seguintes: “Pense na sua aposentadoria”, “Não dependa de ninguém”, “Case, mas tenha o seu próprio dinheiro”, “Não coloque todos os ovos na mesma cesta”, “Viva o presente”, “Estude”. Se fazemos sacrifícios para melhorarmos ou sobrevivermos, merecemos uma parte do cofrinho para nos mimar intencionalmente.
Outro dia, tive a sorte de ir ao show da Anna Ratto, no Rio. No palco, com Chico Chico e Liminha, ela puxou a música “Comida”, gravada pelos Titãs. “A gente não quer só comer. A gente quer comer e quer fazer amor. A gente não quer só comer. A gente quer prazer pra aliviar a dor. A gente não quer só dinheiro. A gente quer dinheiro e felicidade”. Num eterno conflito entre necessidade, desejo e vontade, se presenteie. Sem culpa!