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A vida como uma brincadeira

Nossa editora Liliane Prata se pergunta como seria levar a vida com a seriedade com que as crianças brincam

Por Liliane Prata Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 18 nov 2016, 20h52 - Publicado em 18 nov 2016, 20h44
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  • “O homem chega à sua maturidade quando encara a vida com a mesma seriedade com que uma criança encara uma brincadeira”: estou observando minha filha quando me vem a frase de Nietzsche. Ela está sentada no chão da sala, rodeada por blocos coloridos, bonecas, tampinhas e flores que trouxemos da rua; ela está tão séria em sua brincadeira, exatamente como na frase de Nietzsche, exatamente como as crianças são.

    Estou pouquíssimo nietzschiana hoje, e é nesses dias que mais me pego pensando nos aforismos do filósofo – claro, nos meus dias nietzschianos, não preciso de Nietzsche. É como nos dias em que estou calma e, logo, não preciso meditar. Minha mãe diz que só as pessoas agitadas e ansiosas fazem meditação e ioga. Que se eu pego meu banquinho de madeira, sento, fecho os olhos e faço “ommm”, é porque a coisa tá feia. Geralmente, tá mesmo.

    Olho minha filha mais um pouco. A princípio, os blocos coloridos não têm nenhuma ligação com as bonecas, que não combinam com as tampinhas, que não têm nada a ver com as flores que trouxemos da rua. Mas nada disso tem importância, é claro: ela não está preocupada com a importância de coisa alguma. Pelo contrário, está ali, absurdamente comprometida com o desimportante, juntando os objetos que quer juntar. É por isso que, mais tarde, ela vai pegar seu estojo de lápis de cor e ficar desenhando com a maior concentração do mundo, e depois vai me mostrar os desenhos com a maior concentração do mundo, mas depois vai largar pela casa as folhas desenhadas sem o menor constrangimento: as folhas tinham sido essenciais para ela enquanto foram essenciais para ela, e nem por um segundo a mais.

    Minha filha fica irritada quando não entro na brincadeira. Quando falo, por exemplo, que a sopa da boneca vai esfriar, esquecendo-me de que não é sopa que a boneca está tomando, mas sorvete. Outro dia, ela estava brincando com a casinha de bonecas, e:

    – Eu sou esse aqui, tá – eu disse, arrancando o bonequinho da cadeira de papelão.
    – Espera, mãe, agora ele tá jantando!! – ela respondeu, séria. Seriíssima.

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    Por outro lado, é interessante como ela sabe que a brincadeira é uma brincadeira. Se, por exemplo, eu falo que está na hora de jantar, o jantar de verdade, não o jantar dos bonecos, ela me pede: “Só mais cinco minutos, mãe”. Só pede mais cinco minutos para jantar quem está ciente de que o jantar está fora da brincadeira; ela sabe que há a brincadeira e a não-brincadeira, ela sabe que a brincadeira não é a vida. Mas esse saber não a impede de levar a brincadeira profundamente a sério. É como o ator, que, ao atuar, está e não está atuando. Tive um professor de teatro que insistia em lembrar a turma:

    – Vocês estão totalmente tomados pelo personagem, o mundo de vocês é o mundo do personagem, mas, se o palco pegar fogo, corram!

    Nós, adultos, sabemos fazer isso, é claro. Quando somos sugados por um bom romance ou filme, sabemos que estamos mergulhados em uma ilusão estética, mas esse saber não torna nosso mergulho menos molhado. Estamos aos prantos por causa da morte do personagem, um chato tenta nos acalmar dizendo que é só um filme, e continuamos aos prantos, e ainda com raiva do chato, feridos com seu desrespeito, com sua tentativa insensível de arrancar nosso bonequinho da cadeira de papelão.

    Encaro com seriedade a brincadeira dos filmes, dos livros, das fantasias que invento e também do riso, das longas conversas, do sexo, da corrida no parque, das conversas sem hora para terminar. Mas e fora desses momentos? Como seria isso, encarar a vida com a mesma seriedade com que uma criança encara uma brincadeira?

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    Ajudo minha filha a guardar os blocos. Depois da brincadeira, preparo nosso jantar de verdade, dou um banho de verdade nela, canto para ela dormir de verdade. O tempo passa rápido, como passa sempre que consigo viver a maternidade mais na chave da mãe que eu queria ser quando eu era menina, e não da mãe profissional medo do futuro incerto agenda cheia cabeça mais ainda que sou às vezes.

    Nada mais distante de encarar a vida como brincadeira do que o medo do futuro incerto e as agendas cheias, penso, fechando devagarzinho a porta do quarto dela.

    Liliane Prata é editora de CLAUDIA e escreve semanalmente aqui no site. Para falar com ela, mande um e-mail para liliane.prata@abril.com.br

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