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Ela decidiu pelo aborto. E tudo bem

Nossa editora Liliane Prata reflete sobre a interrupção de uma gravidez indesejada

Por Liliane Prata Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 2 dez 2016, 17h49 - Publicado em 2 dez 2016, 15h27
Cena do filme "4 meses, 3 semanas e 2 dias"  (Divulgação/)
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Terça-feira chuvosa, balanço meu guarda-chuva amarelo, vejo minha amiga numa mesa ao fundo, cabelo preso, olhos graves de quem espera naquele restaurante muito mais do que um almoço. Eu estava desprevenida, ali balançando meu guarda-chuva amarelo, ali sem saber que ela havia decidido me contar algo acontecido três meses antes; algo que ainda estava lhe acontecendo, na verdade.

– Fiz um aborto – ela disse, soltando o cabelo.

Pequena pausa.

– Quando? – perguntei, enfim.
– Hoje faz três meses.
– Deu tudo certo? Com a sua recuperação?
– Deu, sim. Tá tudo bem.

Eu não sabia mais o que dizer, mas acho que ela não esperava mesmo que eu dissesse nada, ela só queria me contar, a gente sabe que intimidade é assim, a gente precisa contar as coisas, precisa sentar na frente do outro procurando não esconder, procurando apenas ser, por mais difícil que seja: o vínculo é sustentado por desconfortos ocasionais, confissões e invasões necessárias.

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Nem parecíamos as imprudentes tagarelas que somos tantas vezes.

– Você já fez um aborto? – ela perguntou.
– Não.
– Você faria?
– Acho que sim. Não sei.
– Vou te contar como foi.

E ela me contou tudo, da certeza meio capenga de que queria fazer aquilo, depois da certeza ganhando força, ganhando uma busca na internet, um telefonema, um endereço, um horário, uma consulta, uma resposta, um fim: acabou, era aquilo. Dissemos ao garçom que não, não tínhamos escolhido ainda, ignoramos o toque de um dos celulares, não lembro se o meu ou o dela, e, sem chorar, mas tudo bem se chorasse, ela falou que ainda não sabia se tinha feito o certo (existe um meio de saber?), mas que precisava fazer e precisava falar.

Nem parecíamos as imprudentes convictas que somos tantas vezes.

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Quando os pratos chegaram, a gente já estava se distanciando do aborto dela e enveredando para os abortos em geral – agora sim, estávamos gesticulando muito à vontade entre nossos sucos e batatinhas, falando sobre células como quem fala de opções de sobremesa, tão mais simples falar sobre células do que sobre o que nos aconteceu há três meses e continua nos acontecendo. Quando a vida começava? Um gole no suco de laranja. Era quando as tais duas células se encontravam? Um guardanapo levado à boca. Quando o coração começa a bater? Quando o sistema passa a ser nervoso? Como a gente quer saber como começa um negócio que a gente nem sabe no que vai dar quando terminar? Batatinhas, batatinhas, batatinhas.

A gente sabia que não existe uma única resposta, na verdade a gente sabia pouquíssimas coisas naquela terça-feira chuvosa, mas a gente sabia disto: que estava tudo bem. Isso era tão certo quanto nossas bocas que mastigavam e sorriam apesar do peso, apesar de tudo. A gente sabia que a decisão dela não tinha sido fácil, que a decisão dela pedia respeito e delicadeza e que, acima de tudo, a decisão dela era dela. Ela havia decidido. E estava tudo bem.

Já em casa, com a cabeça no almoço, começo a escrever meu futuro-texto-que-acabou-virando-este: “Ser pela legalização do aborto não significa banalizar o aborto nem banalizar a vida, nem sustentar certezas que não são tão certas assim. Ser pela legalização do aborto não é dizer que fazer um aborto é simples – é difícil fazer um aborto (e é mais difícil ainda levar uma gravidez indesejada adiante). Ser pela legalização do aborto é simplesmente respeitar a decisão da mulher que, pelo motivo que for, não quer levar uma gravidez adiante. É estipular não com base em aspirações metafísicas, mas com base na ciência que a gente tem, um prazo de gestação para que o aborto seja considerado dentro da lei. De resto, tudo continua igual, inclusive as campanhas informativas sobre os métodos contraceptivos, inclusive a decisão individual de não fazer um aborto, inclusive as perguntas sem resposta. Por mais desconfortável moralmente que possa ser para muitos, não é justo nem democrático obrigar mulher alguma a levar adiante uma gravidez que ela não quer. Não consigo nem imaginar a agressão que deve ser levar por nove meses uma gestação indesejada. Milhares de brasileiras abortam todos os anos, com maiores ou menores riscos, dependendo de sua condição financeira. Nesse sentido, ser pela legalização do aborto é ser pela igualdade.”

Para mim, ser pela legalização do aborto não é ter todas as respostas, é apenas lembrar da minha amiga ali, tomando seu café na mesa do restaurante, naquela terça-feira chuvosa, eu e ela tendo a certeza de que nem eu nem ela nem ninguém deveria ser alvo de punição por ter feito um aborto.

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Liliane Prata é editora de comportamento de CLAUDIA e escreve semanalmente aqui no site. Para falar com ela, mande um e-mail para liliane.prata@abril.com.br

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