Em uma única semana de fevereiro, a vida do ator americano Mahershala Ali, 43 anos, mudou muito. No dia 22, ele se tornou pai – da pequena Bari Najma, fruto do relacionamento de cinco anos com a cantora Amatus Sami-Karim. Quatro dias depois, ganhou o Oscar de melhor ator coadjuvante pelo papel de Juan, em Moonlight – Sob a Luz do Luar, de Barry Jenkins.
“Queria agradecer à minha mulher, que demonstrou uma força incrível neste último trimestre de gestação, justamente o período de premiações”, disse ele no palco do teatro Dolby, em Los Angeles. Poucos minutos depois, Ali presenciaria a bizarra confusão dos envelopes no anúncio do melhor filme do ano. Relembrando: o musical La La Land – Cantando Estações foi erroneamente proclamado vencedor e, só em meio aos discursos de agradecimento, descobriu-se que a estatueta era de Moonlight. “Na hora, fiquei atrapalhado. Não queria tirar o prêmio de alguém. É duro sentir alegria num momento assim”, revelou o ator na entrevista após a festa. Apesar do choque, Ali ainda tinha tudo para ir embora orgulhoso. Ele é o primeiro muçulmano a ganhar a cobiçada estatueta – um marco ainda mais importante em um tempo de acirradas discussões sobre discriminação nos Estados Unidos.
Leia mais: Joi McMillon: a 1ª mulher negra nomeada ao Oscar de Melhor Edição
Um dos primeiros sinais de reconhecimento pelo sucesso veio já no dia seguinte à premiação: retratos de Ali e de seus colegas de elenco Alex R. Hibbert, Ashton Sanders e Trevante Rhodes ilustram a nova campanha da grife Calvin Klein – duas das imagens estampam as próximas páginas. O que poucos sabiam, entretanto, é que o mesmo filme que consagrou a carreira do americano quase não entrou para seu currículo. Ele só foi considerado para o papel de Juan depois que os atores Idris Elba e David Oyelowo desistiram do projeto. “Os agentes nunca ficam animados com um trabalho com o qual não vão ganhar dinheiro, a não ser que o considerem excelente”, contou. “Era esse o caso. Larguei tudo e fiz esse papel praticamente de graça porque sabia que ele transformaria minha vida.”
Juan, que aparece em poucas cenas, é um traficante que salva o menino Chiron (Alex R. Hibbert) do bullying e, de certa forma, da marginalização. Filho de uma viciada em crack – Paula, papel que rendeu a Naomie Harris a indicação ao Oscar também –, Chiron vê em Juan a figura paterna que não tem em casa. O que surpreende, contudo, é a maneira como o traficante é apresentado: uma imagem que foge do estereótipo do bandido violento. “Leio roteiros como esse porque eles vêm para mim, não são enviados para Ryan Gosling; só que raramente são tão ricos. Em geral, têm cenas de ação, alguém atirando, uma explosão.”
O ator conta que também foi vítima de bullying na infância – e admite já o ter praticado –, embora não tenha passado necessidade como Chiron. Ali foi criado sem luxos em Hayward, região de São Francisco, no norte da Califórnia. “Entendo essa realidade. Ninguém pensa nisso, mas onde o traficante mora, faltam livros nas salas de aula, há apenas um professor para 50 alunos e a taxa de encarceramento é maior que em outras comunidades. É preciso, portanto, um esforço extraordinário para sair desses lugares e ser no máximo uma pessoa apenas mediana.”
Os pais de Mahershala Ali eram adolescentes quando ele nasceu. Sua mãe escolheu seu nome de batismo – Mahershalalhashbaz Gilmore – na Bíblia. Três anos depois, o casal se separou. O pai dele era ator e viajava pelo país se apresentando em musicais. Ali ainda se lembra de ver a mãe chorando e, ao perguntar o que tinha acontecido, ouvir que o pai tinha ido embora. “Depois disso, dizem que entrei em depressão”, disse ele à revista The Hollywood Reporter. “Havia uma tristeza, uma melancolia. Isso sempre foi parte de mim, e é daquelas coisas que nos levam para a arte.” Essa marca ele ainda carrega nos olhos, mesmo quando abre sua risada larga.
Embora tivesse o costume de assistir aos musicais do pai (inclusive na Broadway) quando o visitava de férias, Ali não credita ao patriarca a paixão por atuar – algo que só apareceu mais tarde. A figura mais importante de sua infância, para ele, foi a avó paterna. Todas as quintas-feiras, Mamie Gilmore levava o neto ao supermercado e, às sextas, ao McDonald’s. Enquanto ele comia hambúrguer com batata frita, ela repetia: “Você é bonito, inteligente e pode fazer qualquer coisa que colocar na cabeça”.
Leia mais: Como lidar com as emoções conflitantes da maternidade
Cabeleireira, a mãe dele se tornaria ministra da igreja protestante. Quando Mahershala tinha 9 anos, ela se casou novamente, com um homem rígido. O casal proibia o garoto de sair de casa e logo as brigas se tornaram insustentáveis. “Nunca fui bom em levar não; preciso de explicações, motivos. E eles raramente queriam me dar”, contou. Assim, aos 16, ele se mudou para a casa dos avós. Nessa época, percebeu que poderia usar as habilidades nos esportes, principalmente no basquete, para conseguir um objetivo inalcançável financeiramente: a faculdade.
E foi só na universidade, que frequentou com bolsa integral, que subiu ao palco pela primeira vez. “Fui convidado para fazer uma peça e descobri ali o melhor lugar para me entender e educar meu espírito”, disse. “Ao interpretar personagens com circunstâncias diferentes das minhas, investigo por que eles fazem aquelas escolhas, o que os está impedindo de viver plenamente suas experiências. Isso expande minha consciência e ajuda a me compreender melhor, abandonar velhas ideias e continuar a crescer.” Ele acabou abraçando a profissão do pai, que morreu quando Ali tinha 20 anos, e fazendo pós-graduação em artes dramáticas na Universidade de Nova York. Foi lá que conheceu a mulher, Amatus.
Leia mais: “Todo preconceituoso é covarde. O ofendido precisa compreender isso”, Mario Sergio Cortella
Meio sem querer, ela que o levou para o islamismo – seu pai era imã, líder religioso. Em 1999, quando ainda nem eram um casal, Amatus o convidou para ir a uma mesquita na Filadélfia. Durante a experiência, ele que caiu no choro. Uma semana depois, foi sozinho a uma mesquita em Nova York e, novamente, as lágrimas escorreram. E assim se converteu, adotando o sobrenome Ali. “Fiz uma mudança que refletia o que queria na vida naquele momento, como via e compreendia o mundo”, disse.
Enfrentou muito preconceito – até entrou numa lista do FBI após o 11 de Setembro. “Mas eu já tinha sido negro durante 20 anos nos Estados Unidos, tempo suficiente para saber que discriminação existe.” Lembrou do dia em que foi parado pela polícia, que o acusou de ser cafetão da amiga que ele acompanhava.
A carreira começou em séries como Crossing Jordan e The 4400. Na época da aparição em O Curioso Caso de Benjamin Button, resolveu adotar a forma abreviada de seu nome, Mahershala. O sucesso veio quando entrou para o elenco da badalada série House of Cards, da Netflix, no papel do lobista Remy Danton. Depois de quatro temporadas, no entanto, tomou a corajosa decisão de sair do elenco para ampliar seus horizontes. Conseguiu, então, o papel do vilão Cottonmouth na série Luke Cage (Netflix) e de Juan em Moonlight. “Hoje, há mais oportunidades de empoderamento para pessoas não brancas e mulheres na frente e atrás das câmeras. Espero que tiremos vantagem disso”, afirmou o ator, que cresceu sem ver muitos negros na tela. “Mas não vou ficar perdendo tempo lamentando o que não pude vivenciar.”
Leia mais: “Símbolos negros estão em alta, mas nas mãos de pessoas brancas”
Agora, Oscar em mãos, o objetivo é diminuir o ritmo. Depois de um ano gravando sete dias por semana, ele tem motivo para pisar no freio: Bari Najma. “Não tenho tempo a perder. Quero trabalhar de maneira mais focada e encontrar o equilíbrio certo para minha vida.” Seu grande projeto é criar uma garota que saiba ter algo especial a oferecer, sem ser superior ou inferior a ninguém, e que seja persistente, perseverante, paciente e autoconfiante – tarefa que pode ser mais difícil do que ganhar um Oscar.