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Precisamos falar sobre identidade e representatividade afro-asiática

Com ascendência negra e amarela, duas jovens falam sobre suas vivências enquanto pessoas birraciais e sobre a falta de representatividade

Por Gabriela Maraccini (colaboradora)
22 set 2020, 16h18
Com descendência negra e amarela, duas jovens afro-asiáticas contam suas vivências sendo birraciais no Brasil (Arte/CLAUDIA)
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O debate racial e a questão da representatividade estão cada vez mais em evidência. O movimento negro, nos últimos anos, tem ganhado força e ocupando cada vez mais espaço. No entanto, é preciso que falemos também das pessoas birraciais ou multirraciais, como as afro-asiáticas.

Talvez a mais midiática representação atual de uma pessoa afro-asiática – que é descendente de negro e de asiáticos – seja a tenista Naomi Osaka. .Filha de pai haitiano e mãe japonesa, ela conquistou o US Open 2020 representando o Japão e militando pelo Black Lives Matter. Aqui no Brasil, porém, há uma grande quantidade de afros-asiáticos.

É o caso da jornalista e analista de marketing Phanie Sampaio, de 23 anos. A união de sua mãe negra e de seu pai taiwanês fez com que ela nascesse com características negras e amarelas. No entanto, descobrir-se uma pessoa birracial não foi tarefa fácil para a jovem.

“É algo que eu vivo desconstruindo e construindo de novo, é uma loucura”, conta. “Eu comecei a me identificar como uma pessoa não-branca aos 18 anos, quando eu entrei na faculdade e tive contato com as militâncias negras. Eu fui entendendo que eu tinha vivências de uma pessoa não-branca e eu comecei a ficar nessa confusão de ‘quem eu sou?'”, relembra Phanie.

Parte disso se deve aos preconceitos que vivenciou e também à falta de uma representação que a fizesse entender quem realmente era. “Eu ouvia demais que eu era exótica. Tem algo que eu ouvia na minha infância que falavam que eu era ‘chinesa do Paraguai’. Então, eles viam que eu tinha traços asiáticos, sabiam que o meu pai é asiático, mas eu não contemplava, na aparência, o que eles esperavam de uma pessoa chinesa. Então, eu era a chinesa do Paraguai”, relata.

Phanie Sampaio
Phanie conta que demorou para entender sua verdadeira identidade como afro-asiática (Arquivo Pessoal/Reprodução)

A ânsia por entender sua identidade deu origem ao Trabalho de Conclusão de Curso (TCC), PertenSer, feito em parceria com a colega Carolina Serrano. A ideia era falar sobre as diferentes racialidades existentes no Brasil e fazer uma crítica à lacuna existente nos levantamentos de dados no Brasil. Ao definir apenas cinco categorias para raça/cor –  branco, preto, pardo, amarelo e indígena , a classificação do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) não contempla pessoas birraciais e multirraciais, como Phanie.

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“Pelas pesquisas e entrevistas que fizemos, algo ficou muito claro. Todos tiveram esse sentimento que eu sempre tive de confusão, de não saber quem você é”, comenta. “Para as pessoas multirracializadas, que não estão contempladas no espectro do IBGE, há sempre essa confusão de ‘o que eu sou?’, ‘onde eu me encaixo?’, ‘se eu não estou contemplada nessas categorias, será que eu sou um ser social? Será que as ações sociais estão voltadas a mim?'”, questiona.

Aisha Sayuri, de 23 anos, também é birracial e prefere se identificar como negramarela, termo criado pela graduanda em Ciências Sociais Camila Yuri (@negramarela), sua amiga. “Pessoalmente, não me identifico tanto com o termo ‘afro-asiático’, porque eu acredito que o continente africano é um lugar gigantesco, com muita diversidade, assim como o continente asiático. E a minha história, o encontro da minha família, é bem específico diante disso”, explica.

Aisha tem o pai negro e a mãe amarela, é neta de japoneses imigrantes e cresceu no maior centro de cultura nipônica de São Paulo, o bairro da Liberdade. Mesmo com a cultura asiática sendo forte em sua criação, a jovem sempre se entendeu como uma mulher negra.

“Como eu sou uma pessoa negramarela de pele um pouco mais escura, eu sempre senti muito mais, e primeiro, as questões referentes à minha negritude”, conta. “Eu sempre me colocava como uma pessoa negra e descendente de japoneses, porque eu carrego isso muito forte nos costumes da minha família. Mas na identificação, o que veio primeiro para mim e sempre trabalhei muito mais, foi a questão de ser uma mulher negra”, completa.

Família de Aisha Sayuri
Família de Aisha Sayuri. Da esquerda para a direita: seu pai, Aisha, sua irmã e sua mãe. (Arquivo Pessoal/Reprodução)
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Mesmo considerando que a classificação do IBGE é limitante e que não contempla todas as multirracialidades, Aisha acredita que tem fins políticos importantes. “Eu preciso muito de políticas voltadas às pessoas negras, porque muitos dos preconceitos raciais que eu passo na minha vida são referentes à minha negritude. Então, para mim é muito importante, em termos de políticas públicas, que eu marque como negra para fortalecer essas políticas e colher esses frutos”, opina.

Representatividade e autoestima

Além da lacuna no sistema de classificação de raça/cor no Brasil, há ainda pouca representatividade das pessoas afro-asiáticas ou negramarelas. Pouco é falado sobre a identidade no Brasil. Para termos de compreensão do quanto ainda é necessário falar sobre o assunto, ao realizar uma rápida pesquisa na internet sobre o termo, quase nenhum artigo é encontrado, a não ser textos sobre a história da imigração japonesa para o Brasil e a diáspora africana.

“Foi um choque quando eu comecei a fazer a pesquisa para o meu TCC e percebi que não tem quase nenhum material sobre essas questões em um país que é super miscigenado. Nós vivemos em uma cidade que tem a maior colônia de japoneses fora do Japão [São Paulo] e não tem um estudo que fale sobre a miscigenação entre asiáticos e negros, que é outra população enorme no Brasil”, indigna-se Phanie.

Além disso, ainda falta representatividade na mídia. “O único grande nome que eu conheço é a Naomi Osaka, realmente”, afirma Aisha. “Eu acho que falta um pouco de conhecimento da origem dessas pessoas, quem é realmente negramarela e quem realmente combina essas duas identidades raciais. Eu acho que é algo que eu vejo que está se expandindo, mas eu encontrei muito mais representatividade nas pessoas do cotidiano que eu fui encontrando”, relata.

Aisha Sayuri
Aisha Sayuri, de 23 anos, se entende como negramarela e é filha de pai negro e mãe japonesa (Arquivo Pessoal/Reprodução)
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É de se imaginar que devido a essas lacunas, tanto institucionais –  no sentido de não haver, ainda, uma classificação que abranja todas as racialidades existentes – , quanto de representação, a consequência seja sentida na autoestima das pessoas birraciais.

Phanie, durante grande parte de sua adolescência, em uma tentativa de mascarar os traços que revelassem sua ascendência negra e taiwanesa, alisou o cabelo e não saia de casa sem maquiagem. “Eu sempre engrossava a minha sobrancelha, deixava ela mais escura, porque isso é uma das características que eu tenho da minha parte asiática, a minha sobrancelha é um pouco falhada. E eu nunca saía sem rímel, porque o meu cílios também tem essa característica asiática, ele é um pouco mais ralinho e menor”, explica.

Já para Aisha, pelo fato de sempre ter se entendido como uma mulher negra, sua vivência foi diferente. “Eu nunca tive muita dificuldade em me encontrar nesse meio da negritude. É claro, faltam muitas representações de pessoas negras na mídia, então esse é um problema maior que várias racialidades enfrentam e isso acaba moldando as percepções que temos. Justamente por essa ausência de representação, eu nunca fui bombardeada com uma imagem negativa de ser uma pessoa negramarela, como existe com pessoas negras na mídia”, opina.

União de forças e alianças dos movimentos

É de se imaginar também que, por terem em seus fenótipos duas racialidades, as pessoas negramarelas, ou afro-asiáticas, sintam dificuldades de se encontrarem em movimentos raciais, como o movimento negro e o movimento amarelo.

“Dentro da comunidade amarela, existe uma dificuldade em reconhecer que existem pessoas negramarelas, então muitas vezes eu não sou imediatamente reconhecida como parte daquela comunidade. Já na comunidade negra, eu vejo que, às vezes, as pessoas não se atentam a questão das pessoas amarelas”, opina Aisha. “Acho que são processos que estão ocorrendo de formas paralelas: de desnaturalizar que, na comunidade amarela, pessoas negras não podem fazer parte; de começar a refletir o papel e as potenciais alianças [entre os dois movimentos] e tudo o que envolve preconceitos raciais contra pessoas amarelas que acontece dentro da comunidade negra.”

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Phanie compartilha do pensamento de que é possível a aliança entre o movimento amarelo e o negro para debater questões de racialidade. “Eu vejo o movimento amarelo dando muita força para o movimento negro. Há muitas pessoas amarelas usando um pouco da voz que têm dentro de suas próprias militâncias para levantar questões que são do movimento negro”, afirma.

Phanie Sampaio
Phanie Sampaio, de 23 anos, é birracial, com ascendência negra e taiwanesa (Arquivo Pessoal/Reprodução)

É claro que não podemos deixar de pensar que se tratam de vivências e demandas diferentes. “O racismo estrutural das pessoas negras é muito diferente do racismo que uma pessoa amarela sofre. Mas, talvez, no futuro, essa união possa fazer com que essas pautas se cruzem e as pessoas que estão no cruzamento, que são as afro-asiáticas, consigam tomar esse espaço de debate. Porque uma coisa que acontece com frequência é a pessoa birracial tentar entrar em algum desses movimentos e se sentir excluída, por algum motivo, e simplesmente se excluir de todos os debates”, opina a jornalista.

Ambas as jovens afirmam: é preciso que, cada vez mais, pessoas negramarelas, ou afro-asiáticas, usem suas vozes para reivindicar suas identidades, levantando debates. “Precisamos parar de pensar que é só branco e negro. Temos indígenas, amarelos, negro-amarelos, negros-africanos, negros-indianos, há uma gama diversa de pessoas que estão reivindicando seu lugar racial aqui. É cada vez mais importante mostrar para as pessoas que nós existimos”, aponta Aisha.

“Eu acho que isso tem que sair de nós. Não há mais ninguém que possa fazer algo por nós, além de nós mesmos”, opina Phanie. “Então, acho que a única saída é nós começarmos a tomar espaços, que não são necessariamente de outros movimentos, mas de nos reunirmos e começarmos a compartilhar as nossas questões e, quem sabe, criar a nossa própria militância, o nosso espaço de movimento racial. Porque é diferente desses dois [negro e amarelo], não tem como ser igual, porque são vivências muito diferentes. A única saída é começarmos a levantar a nossa voz e levantar a mãozinha pra ver se alguém olha o outro no meio da multidão – se encontrar e começar a falar sobre nós”, finaliza.

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