Na noite anterior à nossa conversa, Ndeye Fatou Ndiaye, de apenas 15 anos, passou mais de quatro horas na 9ª Delegacia Policial, no bairro do Catete, no Rio de Janeiro. Ao lado de seu pai, a estudante foi depor sobre o ataque racista que sofreu nessa semana, em uma conversa entre seus colegas de classe por whatsapp. Mesmo com a pouca idade, a estudante busca usar o caso como maneira de conscientizar sobre o preconceito e ajudar meninas pretas que passam por isso quase diariamente.
Ndeye Fatou é brasileira, filha de pais senegaleses. Assim que o caso veio à tona, pessoas passaram logo a dizer que seus pais eram refugiados africanos, mas não. Mamou Sop Ndiaye, seu pai, nasceu no Senegal e veio ao Brasil em 1998 para estudar Engenharia Eletrônica na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Depois da formação, fez mestrado e doutorado em sua área e hoje é professor do departamento de engenharia elétrica do CEFET/RJ. Sua mãe estudou Enfermagem no país de origem e veio encontrar o marido no Rio anos depois. Juntos, tiveram duas filhas, Ndeye e uma outra menina de 8 anos.
Orgulhosa de suas origens, Fatou diz ser “60% senegalesa e 40% brasileira”. Segundo ela, tudo que planeja está no país de sua família. “Hoje me sinto mais senegalesa do que brasileira. Tudo que é meu está lá, toda a minha família. Visito todos os anos e já cheguei a morar lá também. Em um futuro distante, me enxergo no Senegal. Penso em envelhecer e me aposentar na África”, disse Ndeye em entrevista a CLAUDIA.
Outra parte importante de sua história é a moda. Por influência da mãe, Ndeye diz ser apaixonada pelo assunto. Em 2010, sua mãe abriu a loja África Arte, que vende roupas e acessórios feitos com tecidos e estampas tipicamente africanos e reverte parte do lucro para as famílias senegalesas que fabricam as peças. Atualmente a loja possui filiais no Rio e em São Paulo. “A moda faz parte da minha vida desde que eu me lembro. Gosto de ajudar na loja, especialmente na parte administrativa. É o que mais desperta meu interesse”, conta.
Futuro
Aluna do 1° ano do Ensino Médio, Ndeye Fatou ainda tem tempo para pensar no que quer do futuro, mas já tem ideia do caminho que quer seguir. A menina pensa em cursar medicina depois de se formar. “Gostaria de ser ginecologista para cuidar de mulheres. A saúde da mulher ainda é um tabu, infelizmente, e quero ajudar a desconstruir isso”, afirmou. Por outro lado, também cogita seguir um caminho similar ao do pai, e se dedicar à Engenharia de Petróleo.
A vontade de fazer o segundo curso veio por causa de suas raízes africanas. Segundo Fatou, o continente, que possui aproximadamente 10% das reservas estimadas de petróleo do mundo, quase não possui iniciativas próprias para explorar o óleo. “Apesar dessa riqueza e da exploração européia, a extração do petróleo não gera quase nenhum lucro para o continente e sequer gera empregos. Se eu me dedicar a essa carreira, penso em ajudar a mudar essa realidade do local de minhas origens”.
Racismo
O racismo é uma realidade para todos os negros do Brasil. Em casos como os de Ndeye, que ocorrem em locais de elite, como é o caso do colégio particular Franco-Brasileiro (considerado um dos melhores do Rio de Janeiro), as situações são até mais recorrentes. Como uma das únicas alunas negras da escola e a única de sua turma, a estudante conta que ouvir falas preconceituosas é comum. “Geralmente é um racismo de forma mais velada. Mas de forma bem explícita, foi a terceira vez que sofri na escola, nos 10 anos que estudo lá”, afirma.
O grupo onde foram enviadas as mensagens não era o grupo “oficial” de sua turma, mas sim um composto apenas pelos meninos da classe. Segundo Fatou, havia regras para poder participar da conversa: eram proibidas mulheres, negros e LGBTQI+. Os comentários racistas e preconceituosos eram recorrentes mesmo no grupo geral e a menina diz que sempre tentava alertar sobre o quão problemático aquilo era. Porém, desta vez, o conteúdo foi mais “pesado” e foi exposto por um amigo que participava do grupo paralelo e tirou fotos das mensagens antes de deixar a conversa.
“Quando eu li, não fiquei triste. Fiquei indignada. Pensei muito em meus professores, que sempre tentaram trazer assuntos de cunho racial para as aulas e educar de alguma maneira. Eles sempre me deram voz e já chegaram até a abrir espaço de suas aulas para que eu pudesse falar sobre isso e sobre a história da África. Mas isso não tem nada a ver com a administração do colégio, era de iniciativa dos professores mesmo”, contou Ndeye.
Em um primeiro momento, a administração da escola não procurou a família Ndiaye. Eles foram chamados para uma reunião apenas dias depois, quando o caso ganhou proporções maiores na mídia. Segundo a estudante, eles se isentaram de qualquer responsabilidade porque o que aconteceu ocorreu “fora das dependências da escola”, ou seja, estaria fora de seu controle. Alguns dos autores do crime e sua família também entraram em contato com os pais de Ndeye para se desculpar. “Mas isso também só depois que a história ficou conhecida. Eu sempre soube que eles faziam piadas racistas e sempre tentei alertar, mas eles só resolveram ouvir e tentar se redimir depois de ver que estava tudo exposto em jornais e na televisão”, explica a estudante.
Ndaye já deixou as aulas do Franco-Brasileiro – que, no momento, são online devido às medidas de isolamento social – e deve voltar a estudar em breve em outras escolas. Como aluna com notas excelentes e que já ganhou diversos prêmios na escola, especialmente por alguns trabalhos de poesia, ela recebeu propostas de bolsas de estudo integrais em dois colégios da Zona Sul do Rio. Como os últimos dias foram caóticos, ela não sabe ainda como seguirá no futuro, mas quer voltar a estudar em breve. Em entrevista ao O Globo, Mamour, pai de Ndeye, disse que também pretende tirar a filha mais nova da escola, mas que, por enquanto, ela continua frequentando as aulas online.
Desdobramentos do caso
A família registrou queixa e, depois do depoimento, aguardam os próximos passos. Segundo a delegada responsável pelo caso, hoje (22) cinco adolescentes foram identificados pela polícia como suspeitos pelo ataque racista. Todos eles serão intimados a prestar depoimento, ao lado de responsáveis. Algum membro da escola também deve ser intimado. O ato cometido pelos adolescentes se enquadra no caso de auto de infração, que se equipara ao delito de injúria por preconceito.
Para Ndeye, o que ficou de positivo de toda a situação foram o apoio e as mensagens de carinho que recebeu nas redes sociais. O caso ganhou proporções inimagináveis, que ela espera servirem de exemplo para outros casos do gênero. “Eu fiquei muito feliz porque imagino que muita gente deva estar passando por isso nesse momento e não tem voz para denunciar. Espero que toda essa luta, todo o estresse que passei, faça diferença nos casos de racismo no Brasil, especialmente nas escolas particulares”, finaliza.